segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Riscos: Probabilidades e Intuição

Temos uma habilidade natural, intuitiva, de evitar situações perigosas, e de tomar atitudes que em média aumentam a chance de um resultado benéfico. Certamente esta é uma das causas da nossa sobrevivência como espécie, nós que não temos habilidades físicas notáveis, e que estávamos, na maior parte de nossa história, vivendo em ambientes hostis e fora do nosso controle. 
Como alternativa a ideias intuitivas sobre riscos e chances, existem os conceitos teóricos de probabilidade e estatística. Uma troca de correspondência a respeito de jogos de dados, entre os matemáticos franceses Fermat e Pascal, em meados do séc. XVIII, é geralmente citada como ponto de partida para esta disciplina. Desde então houve um grande avanço no formalismo matemático, e hoje a teoria da probabilidade é ferramenta da ciência aplicada e engenharia. Não se admite hoje um projeto de engenharia que não leve rigorosamente em conta incertezas e indefinições, ou que não inclua uma estimativa das margens de erro (expressão à qual alguns veem necessidade de acrescentar "para mais ou para menos") e dos limites seguros de operação. 
O cálculo de probabilidades tem papel central também nas ciências puras, e no próprio método científico. Se uma teoria prevê um fenômeno e ele de fato vem a ocorrer, isto não é por si só uma evidência importante. É preciso mostrar que são baixas as chances de tal fenômeno ter ocorrido por causas que nada têm a ver com a teoria investigada. Por tudo isso, teoria de probabilidade é um tópico obrigatório em uma variedade de cursos universitários.
Podemos então comparar nossa intuição com o que prevê esta teoria. Descobriremos que, por vezes, nossa intuição nos induz a uma resposta errada. É interessante investigar por que isto acontece, se afirmamos há pouco que ela nos conduziu com sucesso até aqui. Mais interessante ainda, veremos que em outras situações, nossa intuição está correta, e que uma aplicação descuidada de cálculos de probabilidade nos levaria erradamente a criticá-la. 
Certa vez ouvi um curioso argumento sobre a segurança de viagens de avião. Segundo ouvi, se viajamos ao lado de um sobrevivente de desastre aéreo, podemos ficar mais tranquilos. Esta pessoa deve ter chegado a esta conclusão seguindo este raciocínio: se acidentes de avião são raros, a chance de um acidente nesta viagem específica (que seria o segundo do nosso companheiro sobrevivente) seria menos provável ainda. Este argumento é um exemplo extremo de um erro comum: considerar equivocadamente eventos anteriores na avaliação de riscos futuros. 
Há muitas instâncias desse mesmo erro. À primeira vista, não nos parece natural que, se apostarmos na loteria com os mesmos números que foram sorteados na semana passada, nossa chance de sucesso é igual à de apostar com qualquer outro conjunto de números;  que um casal com 3 filhos homens não deve ter nenhuma expectativa exagerada de ter uma filha na próxima tentativa. Pode não nos parecer natural, mas é uma análise correta. 
Se assim não fosse, vamos imaginar como se daria a situação do avião: as peças que constituem todo o aparelho fazem uma investigação sobre o histórico passado dos viajantes e, identificado o sobrevivente, dedicam-se com mais empenho ao seu perfeito funcionamento, para que ele não sofra outro revés? No sorteio da loteria, quando  um número da semana passada é sorteado de novo, as bolinhas correspondentes aos outros números sorteados semana passada escondem-se, para evitar o vexame? Antes da próxima tentativa do casal, os espermatozóides que carregam o gene X farão um movimento político exigindo melhor chance na próxima corrida?
Desconfio que nossa primeira intuição falha nesses casos porque trocamos inadvertidamente uma análise de risco por uma análise de justiça. Confunde-se o conceito de probabilidades iguais com uma ideia intuitiva de justiça ou neutralidade da natureza. Não é justo que o pobre sobrevivente passe por isso de novo; você já ganhou na loteria com seus números, agora outros precisam ter a chance que merecem. E assim por diante. 
Quando se estuda probabilidade na escola, ou na universidade, os exemplos acima e suas variantes são usados para apresentar uma regra geral: eventos anteriores não afetam probabilidades. Uma vez compreendida, vamos ver como nos saímos em outras questões fictícias sobre riscos e chances. São fictícias, mas todas baseadas em argumentos reais que testemunhei ou sobre os quais li:
Situaçao 1) Você acaba de chegar em uma cidade para passar as férias. Encontra um dia de chuva. Um nativo, observando o seu desânimo, procura lhe tranquilizar: "Nessa época, as chuvas raramente duram mais do que 1 dia. Amanhã deve fazer sol". 
Situação 2) (Pedindo desculpas por insistir em estragar suas férias) Você vai passar férias em uma fazenda, propriedade de sua família há muitas gerações. O rio em frente à sede da propriedade é uma diversão da qual você desfrutou quando criança, e seus pais antes de você. Seus filhos estão se dirigindo ao rio, quando o vizinho chega às pressas, para informar que um jacaré foi avistado no rio ontem.

Situação 3) Você e um colega entrevistam candidatos a um emprego. Vocês acabaram de entrevistar um candidato que aparentemente mede mais de 2 metros de altura. Seu colega comenta: "aposto que o próximo candidato é mais baixo". 
Se você quiser evitar o erro que foi cometido na questão do avião, provavelmente daria uma longa explanação ao nativo do problema 1 para lhe mostrar que não se tem a menor ideia sobre o tempo de amanhã, diria ao vizinho do problema 2 que a segurança do rio, comprovada há tantas gerações, não pode ser questionada por um evento isolado que ocorreu ontem, e diria ao colega do problema 3 que nada se sabe sobre a altura do próximo candidato. E, lamento informar, estaria errado em todos os casos. E o que é pior: se não usasse elaborados argumentos acadêmicos sobre probabilidade, teria provavelmente chegado às respostas corretas: o nativo lhe deu sim um motivo para esperança, tire seus filhos do rio, e não aposte com seu colega, porque é provável que o próximo candidato seja mesmo mais baixo. 
Onde foi que erramos? Ocorre que,  por trás dos princípios gerais com os quais se procura ensinar uma disciplina, existem sutilezas às quais precisamos ficar atentos. 
A primeira questão é entender como variam as probabilidades de todos os resultados possíveis, em cada uma das situações. É o que se chama distribuição de probabilidades. Vamos contrastar duas situações bastante diferentes: o sorteio da loteria e a questão da altura do próximo candidato. No caso do sorteio de números, todos os resultados são igualmente prováveis. Esta é uma situação fortemente artificial. Veja como precisamos de artefatos especialmente construídos para torná-la possível: esferas uniformes, de mesmo peso, rotação dos objetos a sortear para evitar que a posição inicial tenha influência no resultado, e assim por diante. Isto pouco tem a ver com qualquer caso de eventos aleatórios na natureza. Não é estranho que nossa boa intuição para riscos e chances tenha problemas aqui. Os resultados desses artefatos  são de fato pouco intuitivos. Por exemplo, chama-se (de forma infeliz, na minha opinião) a média dos resultados possíveis de "valor esperado". Pois bem, a média dos valores possíveis em um lançamento de dados é três e meio. Se alguém lançar um dado e encontrar o número três e meio, eu gostaria de ser avisado. 
Nas situações naturais, é muito mais comum que o valor médio seja também o mais provável, e o nome "valor esperado" não soa aqui tão ruim. Este é o caso de altura em uma população. Há razões (excessivamente técnicas para serem discutidas aqui) para crermos que, neste caso, o valor médio é também o mais provável. Se vamos fazer uma aposta, é bom apostar no mais provável, que neste caso é igual à média.
Talvez agora fique mais clara a questão da altura do próximo candidato. Pode parecer que o colega está escolhendo a sua aposta baseada em eventos anteriores, mas não está: ele está apostando na média. Se apareceu alguém alto, apostamos na média, e dizemos que o próximo candidato será mais baixo. Se apareceu alguém baixo (e não por causa disso), continuamos a apostar na média, e esperamos que o próximo seja mais alto. 
Esse fenômeno chama-se regressão à média ("reversão" e "retorno" também são termos usados) , e ele é tão comum que cria alguns mitos curiosos: por exemplo, um educador experiente pode ter chegado à conclusão que fazer elogios é maléfico ao  desempenho do aprendiz! É fácil imaginar a origem desse erro: o aprendiz está melhorando seu desempenho médio (espera-se!), mas muito lentamente. Entre duas tentativas, seu desempenho esperado (médio) é mais ou menos o mesmo. Se, por sorte, ele teve um desempenho muito acima da média, é razoável supor que a próxima tentativa não será tão boa. Provavelmente, entre a tentativa de sorte e a seguinte, houve um elogio do mestre, surpreso com um desempenho não esperado. Em seguida vem a "piora", que pode parecer causada pelo elogio...  Também é atribuída ao fenômeno da regressão à média a "decadência" de atletas e artistas logo após um estrondoso sucesso. Mas devemos ficar atentos: em todos esses exemplos, como estamos lidando com o desempenho de seres  que respondem emocionalmente aos últimos sucessos e fracassos, um modelo puramente probabilístico deve ser tomado com algum cuidado.    
Assim, antes de criticar alguém por basear seus riscos em "eventos anteriores", é bom certificar-se de que o raciocínio é mesmo esse. Além disso (e até de forma mais interessante), na maioria das situações naturais, todo o nosso conhecimento sobre riscos e probabilidades é baseado em um longo histórico de eventos anteriores e, tomada ao pé da letra, a regra "não considere eventos anteriores" chega a carecer de sentido. Isto está na origem do nosso erro nos outros dois casos.
Vejamos, por exemplo, a questão do clima. O clima do dia seguinte não é sorteado à meia-noite, com chances iguais de sol, chuva ou canivetes. A chuva depende de massas de ar e umidade com extensão determinada no tempo e no espaço, e correlacionadas com a época do ano. O conhecimento acumulado nos permite estimar aproximadamente se o período atual é de sol ou de chuvas, e o raciocínio do nativo na situação 1 é perfeito: se nessa época é raro ter 2 dias seguidos de chuva, amanhã é mais provável que faça sol. Façamos uma analogia: se você sabe que, em seu serviço, atende em média 50 pessoas por dia nessa época do ano, e acabou de atender a pessoa 49, está errado em pensar que seu trabalho naquele dia está perto do fim?
Voltemos à questão do jacaré. A única conclusão possível é bastante óbvia: há um jacaré à solta! Espere que o jacaré seja encontrado antes de retornar a suas estimativas históricas sobre a segurança do local. Bem ao contrário do que uma análise descuidada de probabilidades poderia sugerir, o evento imediato e próximo nos dá mais informação aqui do que o histórico anterior.
E é exatamente assim que agimos. Especialistas de marketing sabem que o consumidor é capaz de mudar completamente uma decisão bem pensada de compra, baseando-se em um único evento, especialmente se ele é recente, e se ocorreu a uma pessoa próxima. Na maioria dos casos, nada há de errado (nem mesmo de irracional) nessa estratégia. Quando compramos um carro, não compramos um conceito teórico de carro médio do fabricante x. Compramos um carro específico, fabricado com as mesmas qualidades e defeitos de modelos recentes e que circulam na minha região do país. É absolutamente correto observar a experiência de compradores da minha região que fecharam negócio recentemente, e não o histórico mundial de desempenho do veículo. 
Ao longo dos argumentos, acabei adiantando o motivo de nossa intuição ser perfeita em algumas situações de risco, e falhar tão curiosamente em outras. Esta ideia não é nova, sendo bem conhecida pelos defensores da chamada psicologia evolutiva: nossa intuição não é uma máquina de computar probabilidades teóricas, mas um dispositivo otimizado para avaliação de risco em situações reais a que fomos expostos em nossa história biológica. Quando usamos este dispositivo em condições diferentes daquelas nas quais ele evoluiu para trabalhar, não surpreende que os resultados sejam ruins.
Em resumo, nas situações que envolvem probabilidades iguais para todos os eventos (que são geralmente construídas de maneira artificial), é preciso ter cuidado com nossa intuição ao avaliar riscos e chances.  Nas demais (que constituem, por sinal, a maioria), nossa intuição não deve ser facilmente desprezada.

Sobre

Este conjunto de textos deve ser visto como um exercício de divulgação de ideias e convites à reflexão a respeito de temas que considero interessantes. Não se trata propriamente de um diário ou registro digital (blog). Não se pretende descrever passo a passo uma experiência específica do autor, nem haverá uma preocupação particular com a postagem de textos curtos e atualizações frequentes.

Ainda que os textos não se limitem a um único assunto, a perspectiva particular de quem os escreve é a de alguém com formação em tecnologia. Na verdade, como parte deste exercício a que me referi, será proposta uma crítica à ideia de que o campo da tecnologia reúne atividades de menor interesse intelectual, ou mesmo opostas a preocupações humanísticas e culturais. 

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