quinta-feira, 19 de maio de 2016

Carlitos e o Ditador também vão ao banheiro

O psicólogo Steven Pinker relata um curioso primeiro encontro entre australianos e nativos da Nova Guiné, decorrente da procura por ouro nos anos 20 [The Language Instinct, pp. 25-26].  Os nativos tiveram acalorada discussão entre si, observada pelos australianos, que evidentemente nada entenderam. Depois de alguns encontros, as civilizações estabeleceram contato suficiente para que fosse explicado o que ocorria na ocasião: os nativos discutiam se os estranhos viajantes eram ou não deuses. É particularmente estranha a forma como chegaram à conclusão de que os exploradores eram apenas mortais esquisitos. Observando um forasteiro dirigindo-se ao mato com alguma pressa, um nativo seguiu-o discretamente. Depois, levou os companheiros ao local, e a decisão foi unânime: "não são deuses: defecam igualzinho a nós". 

Pinker usou essa história para ilustrar sua tese de que a linguagem é uma característica inata do homo sapiens. Os "grunhidos" que os australianos relataram após o primeiro encontro eram na verdade a expressão de um idioma complexo, com tempos, modos e concordâncias, capaz de sustentar a discussão sobre conceitos abstratos (e outros bastante concretos).  Mas o assunto de hoje não é esse: lembrei-me dessa história pensando em humor. 


Eu sou péssimo contador de piadas. E não sou fã de qualquer tipo de humor. Detesto a pegadinha, a criação de constrangimento para outra pessoa, desconhecida ou célebre. Mesmo quando um humorista ou grupo de humor me agrada em geral, pode ganhar um crítico (ao menos para aquela piada específica) se houver exagero nos palavrões ou na vulgaridade.


Assim, sou o mais estranho defensor possível do humor. E defendo. Ouvimos frequentemente que  ridicularizar isso ou aquilo não serve a propósito algum. Mas na verdade serve. 

O humor é o melhor remédio para alguns dos piores males: a presunção e a arrogância. Por trás de cada tentativa de impedir um humorista estão pessoas que se acreditam sérias demais, importantes demais, defensores de uma causa santa demais para serem motivo de piada. Querem se passar por deuses, e o humorista vem nos lembrar que vão ao banheiro. 

E, para poder nos nivelar verdadeiramente, a imitação cômica e a piada devem poder ter qualquer vítima. Lembro-me de uma postagem que circulou há algum tempo em redes sociais. Havia uma foto de Chaplin no papel do Ditador, e uma frase mais ou menos nos seguintes termos:  "Senhores humoristas, queremos rir dos opressores, não dos oprimidos".

Convenhamos, quem quer que tenha tido essa ideia precisa de uma ilustração melhor. Chaplin é um péssimo exemplo, seu Grande Ditador uma exceção. Na maior parte do tempo, Chaplin nos fez rir do pobretão Carlitos, para quem tudo aparentemente dá errado. Um argumento que na mão de alguém menor viraria um enfadonho manifesto sobre a desigualdade.

Vamos rir dos pecadores e dos santos --- se forem santos mesmo, ajudarão a melhorar a piada. Dos ricos e dos pobretões, dos famosos e dos anônimos, de amigos e de inimigos.  Das presunções patológicas do grande ditador e também do azar do pobre Carlitos. Vamos rir, apenas.