quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Quem inventou?

É uma importante tecnologia, essencial para a vida moderna. Muitas pessoas, de diversas nacionalidades, procuraram torná-la viável, porque representa um antigo sonho da humanidade. Entre estas contribuições, a de um brasileiro é por vezes desprezada por europeus a norte-americanos.

Eu não me refiro ao avião, de cujo desenvolvimento e funcionamento eu entendo pouco. Gostaria de apresentar aqui alguns aspectos do desenvolvimento do rádio. Embora eu não seja um especialista, é algo um pouco mais próximo dez minha área de atuação. Gostaria de, usando o exemplo do rádio, mostrar que perguntas como "quem inventou?" de certa forma carecem de sentido, quando se referem a uma tecnologia complexa, por mais que queiramos organizar este tipo de informação em uma tabela, e distribuir medalhas para nações e culturas. Podemos, no máximo, escolher um marco particularmente importante no histórico de evolução destes inventos, e, burocraticamente, chamar este marco de "invenção".

O funcionamento do rádio pressupõe um conjunto de diferentes soluções de tecnologia: a representação de áudio na forma de corrente elétrica, a propagação eficiente de sinais elétricos sem fio, a recepção destes sinais e sua amplificação. Nenhum dos personagens cujo trabalho acompanharemos pode reivindicar a autoria de todas estas soluções.

A ideia de que uma corrente elétrica (ou sua ausência) pode representar informação acaba resultando na primeira aplicação indiscutivelmente relevante da eletricidade: os telégrafos de Cooke e Wheatstone, na Inglaterra, e Morse, nos EUA. O serviço de telégrafo da estação Euston, em Londres, foi inaugurado em 1837, e em meras três décadas já era possível enviar telegramas para todos os continentes, exceto a Antártida.

Neste tipo de tecnologia, um pulso elétrico é manualmente produzido pelo emitente, que abre e fecha contatos elétricos no transmissor. Os pulsos propagam-se por fio até o destino. Operadores são treinados para transcrever texto em códigos de pulsos elétricos (sendo o mais eficiente deles o inventado por Morse, ou melhor, por seu assistente Vail) e para interpretar os pulsos recebidos como letras. Cabos cruzavam continentes e oceanos, fazendo surgir pela primeira vez a ideia de comunicação global.

A representação analógica de áudio em corrente elétrica é obtida com sucesso comercial com os microfones de carbono, que permitiriam em seguida o desenvolvimento do telefone. Thomas Edison depositou patente para esta tecnologia em 1877. Grãos de carbono são colocados entre placas metálicas, e uma delas vibra com a pressão de ar. A corrente entre as placas resulta proporcional à variação de pressão na placa-diafragama, copiando assim a forma de onda de áudio para a corrente elétrica.

Embora haja mais de um fenômeno que permita a um circuito elétrico influenciar outro à distância sem conexão por fio, as ondas eletromagnéticas são, sem dúvida, a forma mais viável. Estas aparecem, no campo teorico, nas equações do eletromagnetismo de Maxwell, desenolvidas entre os anos 50 e 70 do século XIX. Hertz as demonstraria experimentalmente na década seguinte.

Mas Maxwell e Hertz não parecem ter percebido, ou se interessado, pela possibilidade de comunicação à distância. Este último chegou a declarar, explicitamente, que não via aplicação prática para suas "ondas sem fio".

Há uma série de trabalhos que tornam as ondas eletromagnéticas as portadoras ideais para propagar informação sem fio. Deve-se citar em destaque o trabalho de Tesla, que parece ter sido um dos primeiros a perceber que tal tipo de tecnologia levaria a uma nova era de comunicação global. Fez, por exemplo, importantes avanços para obter geradores mais eficientes, trabalhando com frequências mais altas

Marconi combinou os avanços de diversos inventores em um sistema comercialmente viável para comunicação telegráfica sem fio. Em 1897, já era criada sua companhia, e o telégrafo sem fio se torna equipamento comum em transatlânticos no começo do século XX. Funcionários de Marconi estavam a bordo do Titanic e utilizaram o telégrafo sem fio para obter ajuda.

A viabilidade da tecnologia de rádio para a transmissão de voz e música teria que aguardar o desenvolvimento dos primeiros dispositivos eletrônicos, as válvulas de De Forest e Fleming, desenvolvidas nas primeiras decadas do século XX, e que eram capazes de promover a amplificação dos fracos sinais eletromagnéticos recebidos. No entanto, antes do desenvolvimento desta tecnologia, existe o notável feito do padre brasileiro Roberto Landell de Moura.

Não parece haver duvida de que a cidade de São Paulo, em 1900, é palco da primeira transmissão sem fio de voz, em demonstração pública do Padre Moura. Este fato é estranhamente pouco comentado no Brasil. Aparentemente, nosso descaso pela cultura científica é mais forte que nossas tendências ufanistas.

Sem apoio brasileiro (o que provavelmente não surpreende), mas com grande esforço proprio e de amigos, Landell de Moura consegue importantes patentes nos EUA para o "telefone sem fio" em 1904.

Não deveria Landell de Moura ser considerado então o inventor do rádio? Afinal, o que Marconi demonstra comercialmente desde a última década do século XIX é o telégrafo sem fio. Seu sistema não é adequado para a transmissão de voz e música, algo que é imediatamente associado ao que chamamos "rádio".

A primazia de Landell de Moura é defendida por muitos, mas há outros aspectos e trabalhos a considerar. O canadense naturalizado americano Fessenden também demonstra transmissão de voz em 1900, de maneira independente, e aperfeiçoa seu sistema para conseguir a primeira transmissão de música em 1906.

Mas é novamente a companhia de Marconi, chegando um pouco atrasada ao problema da transmissão contínua, adequada para áudio, que vai a partir de 1915 utilizar a nova tecnologia eletrônica de amplificação e desenvolver as primeiras estações transmissoras de rádio em operação comercial.

Em meio a tantos trabalhos, tantos esforços e tantas alegações de originalidade, quem deve receber o título de inventor do Rádio? Pelo conjunto da obra, pelos sucessivos sucessos efetivos de utilização comercial da tecnologia, a maioria acaba apontando para Marconi. O pioneirismo de Tesla, Moura, Fessenden e outros deve, porém, ser lembrado.

Mais do que reunir elementos para tentar responder à nossa pergunta, a pequena história relatada aqui, incompleta e simplificada --- ignorei, por exemplo, toda a questão de como modular as ondas eletromagnéticas para que transmitam informação --- ilustra alguns aspectos importantes e frequentemente ignorados da Tecnologia. O surgimento de uma nova tecnologia tem pouco em comum com a demonstração de um teorema, a proposta de um novo modelo teórico, a realização de um experimento revelador. Ele ocorre após um longo trabalho empírico de aplicação de diferentes técnicas. É um processo que tipicamente valoriza aspectos comerciais das soluções consideradas, algo que a academia tem dificuldade em fazer sozinha. E este processo não costuma ser fruto da inspiração individual de um gênio, mas da combinação dos esforços de equipes. São ideias a considerar hoje, quando se fala que o Brasil precisa encontrar caminhos para que tecnologia e inovação sustentem o desenvolvimento econômico e social.