sexta-feira, 24 de junho de 2011

Ainda os livro

Houve recentemente grande polêmica a respeito de um livro didático do ensino fundamental (“Por uma vida melhor”, Carolina Amaral de Aguiar e outros autores). Em particular, com relação ao seguinte trecho:

Mas eu posso falar os livro?’. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico.

Por um lado, muitos demonstraram indignação com um livro didático que “ensina a falar errado”. Outros tantos mostraram-se não menos indignados com os primeiros, que acusaram de ignorância, ou hipocrisia, ou submissão à imprensa golpista.

Mais uma opinião não há de fazer mal, mesmo vinda de um leigo (ou, pelo menos, um leigo no ensino de crianças e adolescentes). O livro de fato não ensina a falar errado, e esta crítica não é justa quando observamos o contexto da frase. Mas o trecho acima, mesmo lido em contexto, ou principalmente quando se pensa no contexto, merece a indignação que causou.

A linguagem não é um objeto acadêmico, mas um instinto individual que se expressa e se reinventa em sociedade. A linguagem em sua manifestação popular não é menos competente em realizar seus propósitos do que a linguagem mais erudita. Não existe debilidade cognitiva ou preguiça no falar popular, apenas um conjunto diferente de regras. Convenhamos, a justificativa teórica por trás da polêmica frase não é algo difícil de entender.

Nem é tese particularmente nova. Lembro-me, quando ainda aluno do ensino fundamental (à época “primeiro grau”), de ter sido instruído sobre a diferença entre a norma culta e outras formas de comunicação. Nunca fiquei tentado a dizer “passa-me o pão!” na mesa, em família, apesar de meu livro didático não conter uma autorização explícita para que eu continuasse empregando a próclise erradamente. E à época estávamos, se não me engano, no governo Figueiredo, e portanto podemos dispensar o debate PT x PSDB, que não nos ajuda em nada.

Considero razoável, para não dizer óbvio, pedir que um livro do ensino fundamental dedique-se a ensinar fundamentos, e não versões infantilizadas de teses da pedagogia, linguística ou sociologia. Peço também que o livro tenha sido escrito tendo em mente os estudantes que devem lê-lo, e não os especialistas que devem elogiá-lo. O trecho ora famoso, na minha opinião, mostra que o livro falha nos dois quesitos.

Para quem foi escrita a polêmica frase? Para o suposto estudante que fala “os livro”? Ele não sabe que “pode” falar como....fala? É ele que vem, incrédulo, pedir nossa permissão com a pergunta que inicia este trecho citado? Sem esse aviso, ele talvez viesse a desprezar o linguajar de seus amigos, de sua família, dos artistas populares que admira? Alguém realmente acredita que livros e professores tenham este poder?

Não, este trecho foi escrito para que os próprios autores professem, diante de seus pares e do público,  sua subscrição a teses em voga. Também a defesa apaixonada que se seguiu, com vários depoimentos de especialistas --- pois não há certo nem errado, mas especialistas há --- não chega a ser um debate sobre técnicas de ensino, mas uma cerimônia na qual pessoas vêm a público demonstrar sua superior generosidade, conhecimento e tolerância.

Mas pior do que esta autorização condescendente é a advertência que se segue: a crítica ao emprego do linguajar popular é preconceito. De novo os autores subscrevem tese cuja popularidade atual só é menor do que o tamanho do erro nela contido. Segundo tal ideia, toda crítica seria manifestação de alguma forma de preconceito. Tal raciocínio só pode interessar a quem deseja calar a crítica e, no caso da educação, fazer apologia à ignorância.

Afirmei acima que não há debilidade cognitiva ou preguiça no falar popular. É preconceito supor que uma pessoa seja pouco inteligente, ou incapaz, porque fala “os livro”. Mas não é preconceito supor que ela tenha tido educação incompetente, ou tenha-se dedicado pouco aos estudos. No momento de escolher entre candidatos para qualquer tarefa, não é preconceituoso nem errado levar este fato em conta. E a pessoa terá sido vítima sim. Não do preconceito, mas do fracasso do processo a que ela se submeteu, pensando em se aprimorar. Alguém que está sentado em uma sala de aula para estudar não pode seriamente considerar a "opção" oferecida pelos autores. Para falar como já fala, para pensar como já pensa, o que estaria fazendo ali?

Se a escola de fato não pode corrigir ou criticar (porque isto seria preconceito), o que ela de fato oferece? Como se chega à vida melhor que o livro humildemente propõe em seu título? Para ensinar ou defender o que se vê nas ruas, as ruas são melhores do que as escolas. Melhores do que seus professores e certamente melhor do que seus livros.