quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Sobre o voo, ou de como as moléculas são pontuais

Certa vez eu li uma tirinha interessante em uma rede social. Infelizmente não voltei a encontrá-la para a citação adequada. Nela, uma professora de primário explicava como aviões voam. Sabe-se que a explicação mais comum vai mais ou menos assim:

"O formato da asa do avião faz com que o ar percorra um caminho maior por cima do que por baixo. O ar de cima  precisa então mover-se mais rápido, para chegar ao mesmo tempo que o ar de baixo ao final da asa. Se assim não fizesse, haveria um vácuo, coisa que a natureza não permite. Segundo o principio de Bernoulli, o ar que se move mais rápido exerce uma força menor sobre a asa. Assim, a força da parte de baixo é maior, e a força resultante é para cima".

Na último quadro da tirinha, uma criança comenta "Mas outro dia, em um show aéreo, eu vi um avião voando de cabeça pra baixo...."  e a professora entra em pânico. 

Eu não tenho qualquer experiência com ensino infantil, e não poderia ajudar a pobre professora. Eu acho que apontar para a janela, gritar "Olha o Papai Noel!" e sair correndo da sala não deve ser a forma correta de agir, mas não sei muito mais que isso.

Vamos deixar claro: não estou defendendo que haja algo de misterioso na forma como aviões funcionam. Muito menos que físicos e engenheiros nos enganam ao se mostrarem confiantes no funcionamento de sua máquina voadora. Eu apenas gostaria de refletir sobre esse fato curioso: há um furo razoavelmente óbvio na explicação mais comum para um fenômeno que conhecemos há mais de um século, e que é a base do transporte internacional nos dias de hoje. Por quê?

Uma primeira resposta que vem à mente seria: porque explicar, na sua acepção cotidiana, não é o que a ciência faz. A ciência constrói e testa modelos e teorias. A teoria sobrevive se prevê, quantitativamente, o fenômeno estudado. Se tudo der certo (ou até tudo dar errado), temos certos conceitos e equações que podem ser usados para confirmar os fenômenos observados e prever novos fenômenos, e talvez construir coisas novas, formular novas perguntas.

Quando perguntamos "por quê?" queremos algo que justifique intuitivamente o fenômeno, com base no nosso conhecimento cotidiano. Mas, no caso do avião, há um problema: não temos conhecimento cotidiano sobre o efeito de fluidos movimentando-se em altas velocidades em torno de asas. Nem sempre se pode esperar da ciência uma explicação intuitivamente convincente.

Mas, pensando melhor, essa não pode ser a história completa. Na verdade, é óbvio que uma criança, ao perguntar por que algo tão pesado pode voar, não está esperando uma explicação sobre as equações de Navier-Stokes. A questão é: a explicação da hipotética professora (presente em inúmeros livros-textos, enciclopédias e revistas de bordo) é o melhor que podemos fazer? A menos que estudemos a fundo a mecânica dos fluidos, temos de nos contentar com uma explicação que não vale para acrobacias? Eu acho que não. Na verdade, a explicação "caminho mais longo" não funciona porque é bem ruim mesmo. 

Coloque sua mão paralela ao solo, contra o vento --- eu ia sugerir que você colocasse a mão para fora da janela de um carro em movimento, mas como a lei não permite isso, eu quero deixar claro que não estou sugerindo tal coisa. Agora, incline a mão para cima. Neste nosso modelo cru de aviação, a sua mão não tenderia a subir em direção ao céu? Não podemos usar esta analogia crua para uma explicação intuitiva? A alta velocidade que o avião desenvolve na pista --- que corresponde a uma alta velocidade do ar em torno da asa --- faz com que, ao se colocar a asa na inclinação correta, surja uma força de sustentação. 

Mas o avião não inclina a asa para levantar voo.... Se eu entendi direito, ele faz algo parecido. O piloto faz inclinar uma parte móvel da cauda chamada, muito apropriadamente, elevador, de tal forma que o fluxo de ar em alta velocidade pressione a cauda para baixo. Como em uma  gangorra, o corpo do avião se inclina para cima.  Sim, o formato, o tamanho e a posição das asas são todos importantes, e não há nada errado com Bernoulli, mas isso não é a parte mais interessante para uma primeira explicação, penso eu.

Talvez essa historinha ainda nos dê uma pergunta melhor:  por que essa explicação nos convence (ao menos até a criança vir estragar tudo)? Acredito que tendemos a aceitar essa explicação porque foi citada uma "lei da natureza" e um "Principio de Alguém", e tendemos a achar que quem fala essas coisas deve saber do que está falando. Em tempo, Leis da Ciência são relações específicas, geralmente numéricas, a serem posteriormente explicadas por uma boa Teoria. Declarar que a Natureza abomina alguma coisa ou que as moléculas no ar têm horário a cumprir não ajudam a explicar nada. Aliás, este é o pior trecho da explicação "caminho mais longo". O fluxo de ar por cima da asa torna-se, como testes em túneis de vento e simulações em computador podem mostrar, muito mais rápido do que o necessário para que o hipotético casal de moléculas separados pela asa unam-se felizes do outro lado.

Em resumo, eu diria a uma criança que "o avião corre tão rápido que o vento que bate nele faz uma força que leva ele pra cima". Se a criança não gostar da explicação, Papai Noel pode revelar-se útil.