sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Novo Blog

Estou passando a usar um novo serviço de Blog. Aos poucos os textos daqui serão reformatados e passados para

http://comlimitadacerteza.wordpress.com

A ideia é que neste novo endereço eu escreva textos mais frequentemente, também.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Carlitos e o Ditador também vão ao banheiro

O psicólogo Steven Pinker relata um curioso primeiro encontro entre australianos e nativos da Nova Guiné, decorrente da procura por ouro nos anos 20 [The Language Instinct, pp. 25-26].  Os nativos tiveram acalorada discussão entre si, observada pelos australianos, que evidentemente nada entenderam. Depois de alguns encontros, as civilizações estabeleceram contato suficiente para que fosse explicado o que ocorria na ocasião: os nativos discutiam se os estranhos viajantes eram ou não deuses. É particularmente estranha a forma como chegaram à conclusão de que os exploradores eram apenas mortais esquisitos. Observando um forasteiro dirigindo-se ao mato com alguma pressa, um nativo seguiu-o discretamente. Depois, levou os companheiros ao local, e a decisão foi unânime: "não são deuses: defecam igualzinho a nós". 

Pinker usou essa história para ilustrar sua tese de que a linguagem é uma característica inata do homo sapiens. Os "grunhidos" que os australianos relataram após o primeiro encontro eram na verdade a expressão de um idioma complexo, com tempos, modos e concordâncias, capaz de sustentar a discussão sobre conceitos abstratos (e outros bastante concretos).  Mas o assunto de hoje não é esse: lembrei-me dessa história pensando em humor. 


Eu sou péssimo contador de piadas. E não sou fã de qualquer tipo de humor. Detesto a pegadinha, a criação de constrangimento para outra pessoa, desconhecida ou célebre. Mesmo quando um humorista ou grupo de humor me agrada em geral, pode ganhar um crítico (ao menos para aquela piada específica) se houver exagero nos palavrões ou na vulgaridade.


Assim, sou o mais estranho defensor possível do humor. E defendo. Ouvimos frequentemente que  ridicularizar isso ou aquilo não serve a propósito algum. Mas na verdade serve. 

O humor é o melhor remédio para alguns dos piores males: a presunção e a arrogância. Por trás de cada tentativa de impedir um humorista estão pessoas que se acreditam sérias demais, importantes demais, defensores de uma causa santa demais para serem motivo de piada. Querem se passar por deuses, e o humorista vem nos lembrar que vão ao banheiro. 

E, para poder nos nivelar verdadeiramente, a imitação cômica e a piada devem poder ter qualquer vítima. Lembro-me de uma postagem que circulou há algum tempo em redes sociais. Havia uma foto de Chaplin no papel do Ditador, e uma frase mais ou menos nos seguintes termos:  "Senhores humoristas, queremos rir dos opressores, não dos oprimidos".

Convenhamos, quem quer que tenha tido essa ideia precisa de uma ilustração melhor. Chaplin é um péssimo exemplo, seu Grande Ditador uma exceção. Na maior parte do tempo, Chaplin nos fez rir do pobretão Carlitos, para quem tudo aparentemente dá errado. Um argumento que na mão de alguém menor viraria um enfadonho manifesto sobre a desigualdade.

Vamos rir dos pecadores e dos santos --- se forem santos mesmo, ajudarão a melhorar a piada. Dos ricos e dos pobretões, dos famosos e dos anônimos, de amigos e de inimigos.  Das presunções patológicas do grande ditador e também do azar do pobre Carlitos. Vamos rir, apenas.

 

quinta-feira, 23 de julho de 2015

A espetacular aranha-aranha e o problema das escalas


O escritor Peter Wayner ressalta um fato curioso: poucas coisas são tão relacionadas à palavra “nerd" quanto histórias de super-herois e ciências exatas (Física, em particular), e é curioso observar como elas parecem vir de mundos (ou “dimensões”, para usar o jargão correto) diferentes. Os super-poderes vêm de alguma mudança ou exceção às regras do mundo físico, e o autor se pergunta se não estaria aí a explicação para a popularidade de tais histórias entre pobres mortais que são diariamente humilhados por essas mesmas regras em seus laboratórios. 

Uma tese interessante, mas não é o que eu gostaria de discutir aqui. Também não aprovo uma visão muito literal (ou infantil?) da questão. É óbvio que físicos, romancistas e padeiros sabem que ficções são ficções, e “explicá-las”, em um sentido literal, é completamente sem sentido. Mas, de uma forma ou de outra, bons roteiros pedem alguma coerência interna, e os tais super-poderes, se não têm explicação, têm uma história. Essas histórias são reveladoras de nossas visões de mundo, algumas com paralelos na ciência moderna, outras não. E aí está o meu interesse. 

Por que o jovem Peter Parker escala paredes sem dificuldade? Eu sou um nerd muito fraco nas questões de histórias em quadrinhos, mas se não me engano ele foi picado por uma aranha. E eu me lembro de haver alguma coisa radioativa —- sempre tem que haver alguma coisa radioativa. Enfim, uma “característica" de aranha foi passada para um homem. Aranhas sobem paredes, e o homem que sobreviveu a esse “contato" passou a subir paredes, entre outras coisas.  

Essa história remete a duas importantes ideias com as quais nos identificamos instintivamente:  cada objeto ou entidade carrega consigo um conjunto de características inerentes ou, em outras palavras, tem "o seu lugar”; o contato com essas entidades permitem a transferências dessas características. Em alguns casos, com o perdão dos relativistas, tais visões ingênuas se mostram incorretas. Em outros casos elas são úteis. Dizer que pedras “naturalmente” caem no chão e o gás “naturalmente" sobe aos céus pode satisfazer nossos desejos de classificação, mas não explica rigorosamente nada. Vestir-se com pele de búfalo e fazer um ritual não garante a presença de búfalos na próxima caçada. Mas o que eu chamei desejo de classificação não raro é o primeiro passo para procurar uma explicação melhor. E encostar um pedaço de madeira seca no fogo produz fogo. E fazer um certo ritual com madeira seca produz uma chama. 

Deixemos Peter Parker no mundo da ficção e façamos a pergunta realmente interessante: por que aranhas escalam paredes sem dificuldade? Ora, porque aranhas (e formigas, etc.) vivem em um outro mundo. Mais especificamente, em uma outra escala de mundo. 

Em nosso mundo (de metros e de dezenas ou centenas de quilogramas), somos comandados pela força da gravidade. Qualquer movimento vertical exige uma explicação. Na mundo das aranhas, de centímetros e de gramas, a tensão superficial e o atrito tornam-se igualmente importantes. Subir uma parede, para uma aranha, exige tanta explicação quanto subir uma ladeira para um de nós. Não há nem mesmo a necessidade de uma nova teoria. Aranhas sobem paredes porque são muito leves e seu contato com as paredes (que, a propósito, na escala em que elas vivem nunca são lisas!) é mais do que suficiente para equilibrar-se. 

O reconhecimento de que diversas mundos, em diversas escalas, convivem em uma mesma realidade (ou melhor, em realidades completamente diferentes!) é uma belo e pouco comentado aspecto da Física. E tem aplicação muito além da cultura nerd. Usar uma célula solar e uma bateria para alimentar um pequeno televisor é tecnologia disponível há décadas. Estender a ideia para alimentar cidades e países com energia solar não é óbvio, nem disponível na tecnologia de hoje. 


Certas soluções “escalam" e outras “não escalam”, como qualquer bom estudante de engenharia aprende. E não há por quê limitarmos essa análise a paredes, ou a questões de física. A política bem sucedida em uma ilha de milhares de habitantes resolve o problema do continente de milhões? Talvez apenas nas discussões de botequim. O prefeito com uma iniciativa notável como secretário municipal de educação será um bom ministro multiplicando seu plano por um fator 1000? É saudável duvidar. Na nossa escala de mundo, é sempre razoável  duvidar dos super-poderes. 

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Sobre o voo, ou de como as moléculas são pontuais

Certa vez eu li uma tirinha interessante em uma rede social. Infelizmente não voltei a encontrá-la para a citação adequada. Nela, uma professora de primário explicava como aviões voam. Sabe-se que a explicação mais comum vai mais ou menos assim:

"O formato da asa do avião faz com que o ar percorra um caminho maior por cima do que por baixo. O ar de cima  precisa então mover-se mais rápido, para chegar ao mesmo tempo que o ar de baixo ao final da asa. Se assim não fizesse, haveria um vácuo, coisa que a natureza não permite. Segundo o principio de Bernoulli, o ar que se move mais rápido exerce uma força menor sobre a asa. Assim, a força da parte de baixo é maior, e a força resultante é para cima".

Na último quadro da tirinha, uma criança comenta "Mas outro dia, em um show aéreo, eu vi um avião voando de cabeça pra baixo...."  e a professora entra em pânico. 

Eu não tenho qualquer experiência com ensino infantil, e não poderia ajudar a pobre professora. Eu acho que apontar para a janela, gritar "Olha o Papai Noel!" e sair correndo da sala não deve ser a forma correta de agir, mas não sei muito mais que isso.

Vamos deixar claro: não estou defendendo que haja algo de misterioso na forma como aviões funcionam. Muito menos que físicos e engenheiros nos enganam ao se mostrarem confiantes no funcionamento de sua máquina voadora. Eu apenas gostaria de refletir sobre esse fato curioso: há um furo razoavelmente óbvio na explicação mais comum para um fenômeno que conhecemos há mais de um século, e que é a base do transporte internacional nos dias de hoje. Por quê?

Uma primeira resposta que vem à mente seria: porque explicar, na sua acepção cotidiana, não é o que a ciência faz. A ciência constrói e testa modelos e teorias. A teoria sobrevive se prevê, quantitativamente, o fenômeno estudado. Se tudo der certo (ou até tudo dar errado), temos certos conceitos e equações que podem ser usados para confirmar os fenômenos observados e prever novos fenômenos, e talvez construir coisas novas, formular novas perguntas.

Quando perguntamos "por quê?" queremos algo que justifique intuitivamente o fenômeno, com base no nosso conhecimento cotidiano. Mas, no caso do avião, há um problema: não temos conhecimento cotidiano sobre o efeito de fluidos movimentando-se em altas velocidades em torno de asas. Nem sempre se pode esperar da ciência uma explicação intuitivamente convincente.

Mas, pensando melhor, essa não pode ser a história completa. Na verdade, é óbvio que uma criança, ao perguntar por que algo tão pesado pode voar, não está esperando uma explicação sobre as equações de Navier-Stokes. A questão é: a explicação da hipotética professora (presente em inúmeros livros-textos, enciclopédias e revistas de bordo) é o melhor que podemos fazer? A menos que estudemos a fundo a mecânica dos fluidos, temos de nos contentar com uma explicação que não vale para acrobacias? Eu acho que não. Na verdade, a explicação "caminho mais longo" não funciona porque é bem ruim mesmo. 

Coloque sua mão paralela ao solo, contra o vento --- eu ia sugerir que você colocasse a mão para fora da janela de um carro em movimento, mas como a lei não permite isso, eu quero deixar claro que não estou sugerindo tal coisa. Agora, incline a mão para cima. Neste nosso modelo cru de aviação, a sua mão não tenderia a subir em direção ao céu? Não podemos usar esta analogia crua para uma explicação intuitiva? A alta velocidade que o avião desenvolve na pista --- que corresponde a uma alta velocidade do ar em torno da asa --- faz com que, ao se colocar a asa na inclinação correta, surja uma força de sustentação. 

Mas o avião não inclina a asa para levantar voo.... Se eu entendi direito, ele faz algo parecido. O piloto faz inclinar uma parte móvel da cauda chamada, muito apropriadamente, elevador, de tal forma que o fluxo de ar em alta velocidade pressione a cauda para baixo. Como em uma  gangorra, o corpo do avião se inclina para cima.  Sim, o formato, o tamanho e a posição das asas são todos importantes, e não há nada errado com Bernoulli, mas isso não é a parte mais interessante para uma primeira explicação, penso eu.

Talvez essa historinha ainda nos dê uma pergunta melhor:  por que essa explicação nos convence (ao menos até a criança vir estragar tudo)? Acredito que tendemos a aceitar essa explicação porque foi citada uma "lei da natureza" e um "Principio de Alguém", e tendemos a achar que quem fala essas coisas deve saber do que está falando. Em tempo, Leis da Ciência são relações específicas, geralmente numéricas, a serem posteriormente explicadas por uma boa Teoria. Declarar que a Natureza abomina alguma coisa ou que as moléculas no ar têm horário a cumprir não ajudam a explicar nada. Aliás, este é o pior trecho da explicação "caminho mais longo". O fluxo de ar por cima da asa torna-se, como testes em túneis de vento e simulações em computador podem mostrar, muito mais rápido do que o necessário para que o hipotético casal de moléculas separados pela asa unam-se felizes do outro lado.

Em resumo, eu diria a uma criança que "o avião corre tão rápido que o vento que bate nele faz uma força que leva ele pra cima". Se a criança não gostar da explicação, Papai Noel pode revelar-se útil. 


sábado, 27 de setembro de 2014

A falácia do argumento falacioso - Parte I: Ad hominem

Costumamos dizer que usamos lógica perfeita em nossos argumentos, e nossos adversários, se por erro ou má fé não se sabe, usam argumentos apaixonados e sem lógica. Isso raramente é verdade. De fato, o fascinante campo da lógica formal ajuda-nos muito pouco em uma discussão mundana sobre questões concretas, pelo simples fato de que frequentemente partimos de premissas diferentes sobre nossos objetivos, e sobre o que estamos dispostos a pagar para alcançá-los.

Em geral, acusamos nossos adversários de cair em "falácias". É divertido analisar criticamente a questão das falácias, e verificar que esta acusação é, não raro, falaciosa.

Uma acusação comum de falácia  é de que foi usado um argumento "ad hominem". E podemos ter certeza de ter feito algo muito sério quando nos acusam em latim. Em bom português, estaríamos sendo acusados de construir um argumento dirigido à pessoa e não à ideia que ela defendera. Por exemplo, após ouvir alguma argumentação sobre a defesa do meio ambiente, seria "ad hominem" retrucar algo como "você diz defender o meio-ambiente mas ontem eu lhe vi avançando o sinal vermelho". Avançar o sinal vermelho é errado, mas isso nada tem a ver com os argumentos do suposto infrator no assunto meio-ambiente.

O curioso é que a expressão "ad hominem" é frequentemente usada de maneira, paradoxalmente, falaciosa. Por exemplo, quando se discute uma atitude (no caso, a defesa do meio ambiente), NÃO é falacioso, muito menos "ad hominem", apontar que tal atitude é contrária àquilo praticado por quem a defende. Se a atitude tem a ver com a defesa do meio ambiente, não seria ad hominem a objeção "você fala sobre defender o meio-ambiente por meio do uso coletivo do transporte,  mas eu nunca lhe vi deixar o carro na garagem". Esta é uma objeção, lógica e válida, à boa fé e sinceridade do proponente da hipotética tese ambientalista. O proponente pode ter uma boa explicação para isso, mas precisa se explicar. Gritar "ad hominem" não resolve.

Também não é "ad hominem" indicar que o próprio argumento desqualifica seu proponente por sua condição. Essa acusação costuma surgir alguém dramatiza a defesa de sua proposta com algo do tipo "só o povo oprimido nas ruas pode entender do que estou falando!" --- ora, então você mesmo não pode entender do que está falando, ou está oprimido nas ruas? Esse erro é consequência da mania de nos vermos como extra-terrestres bondosos, que tudo veem mas que não têm interesse pessoal nas coisas do mundo. Uma mentira, obviamente, que não se torna menos mentirosa com pitadas de latim.

Não é fácil a tarefa de argumentar corretamente. Deveria ser uma parte importante do aprendizado das escolas --- melhor do que garantir que os estudantes do ensino médio saibam de cor as fases da mitose. Tal dificuldade não deveria ser uma surpresa. Damos, humildemente, o título de "sábia" para a nossa própria espécie, mas nós não chegamos aqui por argumentos e reflexões.  Em meio a uma discussão, nossas narinas se inflam e nossos dentes rangem --- até mesmo os do que se dizem "defensores da paz mundial". E por uma razão elementar: nosso corpo não sabe a diferença de um debate de ideias e uma luta pela vida.

Isso nos diz que violência e a força --- escrevo outro dia sobre a falácia "ad baculum" --- é o caminho natural? Não diz, e na verdade eu não sei quanto ao leitor(a), mas eu não dou a mínima para o que seria o "caminho natural". Só me preocupa o caminho moral e eticamente correto, que não está logicamente amarrado a nada que a natureza venha a exibir.

O que isso nos diz é que, por honestidade intelectual, devemos parar de fingir sermos máquinas calculadoras de predicados lógicos, ou instrumentos da verdade revelada. Numa tarefa difícil e perigosa, esses presunçosos mamíferos que somos deveriam investigar seus próprios argumentos procurando neles o preconceito, o interesse egoísta, a visão parcial e míope, o instinto animal. De outro modo, como seria possível aprender alguma coisa quando nossas falácias forem expostas?


terça-feira, 11 de março de 2014

Pela liberdade, desde que necessária e simpática

Eu costumo dizer aos meus colegas professores que precisamos apoiar os que são contra a educação, porque está claro que apoiar os que são a favor não está dando muito certo. Brincadeira, obviamente. Mas é curioso como ninguém, absolutamente ninguém, da esquerda, da direita ou do alto, fala sobre educação sem usar palavras como "essencial" ou "prioridade". Sabemos disso professores, alunos, ex-alunos, os que nunca estudaram, e sobretudo os políticos, aparentemente. E tudo continua. 

Assim como não há quem seja contra a educação, nunca conheci alguém contrário à liberdade de expressão. Acreditamos todos na liberdade. Exigimos liberdade. Repudiamos a censura. O diabo é que sempre vem um "mas". Encontramos, assim, os curiosos conceitos da liberdade da expressão necessária, e liberdade da expressão simpática.

É particularmente estranha a posição de defesa da liberdade de expressão, desde que ela seja "necessária", seja lá o que isso possa significar. Ataca-se assim, principalmente o trabalho dos humoristas, com frases do tipo  "... mas PRECISAVA fazer piada sobre isso?". É claro que não precisava. Por isso chamamos LIBERDADE de expressão --- não se deveria chamar "necessidade de expressão", se ela fosse necessária? Um artista ou outro cidadão qualquer optou por expressar-se de certo modo, e esta sua opção está protegida dentro de certos limites. Basta aceitarmos que alguém tenha a tarefa de dizer qual expressão é realmente necessária, e a liberdade de expressão já foi pro brejo.

Também há os defensores da expressão agradável, ou simpática. Dizem algo como ".... mas não se pode criar aborrecimento para o outro". Ora, a única expressão que precisa ser protegida é aquela com o potencial de provocar ou perturbar alguém, a expressão que alguém quer ver suprimida. A expressão daquilo com que todos concordamos e "achamos lindo" não precisa de proteção alguma.  Também é simplesmente injusto pedir a um autor que avalie, de antemão, o possível efeito de seu discurso, em qualquer interpretação, sobre todos os terráqueos. Se esse é o critério, a liberdade de expressão vira imediatamente uma utopia.

Não há espaço para dúvidas aqui. Esses dois discursos são contrários à liberdade de expressão,  em qualquer interpretação razoável  que tal conceito venha a ter. São uma apologia, ainda que envergonhada, da censura. Confunde-se, imagino, defender a liberdade de expressão e aprovar uma ideia ou manifestação especifica.  Eu posso repudiar um texto ou um filme, uma música ou um show, e nem preciso justificar meu repúdio. Mas outros adultos da sociedade devem apreciar essa expressão sem a minha interferência ou proibição. Nada mais, nada menos.

Então não há limites? Ora, há muitos limites, mais do que haveria espaço para discutir neste canal. A liberdade de expressão não pode servir de desculpa para incitar ou planejar o crime, para intimidar ou ameaçar o outro, apenas para citar alguns exemplos.  Em alguns casos, a linha que limita este direito em favor de outros não menos importantes é absolutamente clara. Para os casos em que a linha seja discutível, os tribunais estão abertos, e seus ocupantes bem pagos. Mas em nenhum caso o indivíduo deveria ter que provar a necessidade ou a simpatia de sua expressão. 


domingo, 28 de abril de 2013

De como não sou Pós-Doutor

As denominações dos títulos acadêmicos variam entre instituições e, principalmente, entre países. Uma pessoa que terminou um doutorado em engenharia pode acrescentar, dependendo da origem do diploma, as siglas Dr., Dr. Ing., Ph.D., Dr. Sc., Dr. Phil., entre outros. Diferenças culturais à parte, eles todos significam basicamente a mesma coisa: o portador concluiu com sucesso um programa de estudos que incluiu uma contribuição original para um problema relevante de pesquisa. Teve a qualidade de seu trabalho avaliada por uma banca de doutores, na qual  estava presente pelo menos um pesquisador de outro programa de pós-graduação. Ele passa assim a ser considerado um pesquisador independente, e passa a ser chamado doutor.

Entretanto, tornou-se comum em anos recentes alguns acadêmicos passaram a se apresentar como  "Professor Doutor e Pesquisador da Universidade x". Eu não sei para quê isto serve, já que, a princípio, pelo visto acima, só com doutorado alguém se torna pesquisador, e dizer-se doutor e pesquisador parece um pleonasmo.

Mas na área de currículos há algo ainda mais estranho. Trata-se da informação: "Pós-doutor em x pela universidade y". Eu ainda não encontrei uma boa explicação para esta denominação.

Pós-doutorados existem, é claro. O processo que leva ao doutorado, que descrevi no primeiro parágrafo, pode ser concluído antes dos 30 anos, dependendo das tradições acadêmicas locais. Tendo em vista a expectativa de vida, é óbvio que o doutorado não é o fim de nenhum processo, mas o começo. Haverá oportunidades para o recém-doutor (ou o velho doutor) participar de novo projeto de pesquisa em uma instituição diferente da sua. Chama-se esta atividade de estágio pós-doutoral ou pós-doutorado.

O problema não é a expressão pós-doutorado, mas o uso da palavra pós-doutor como se este fosse um titulo, um nível de formação acadêmica acima do nível de doutor. Ora, vimos que o doutor é aquele que alcançou a condição de pesquisador independente. O que seria o pós-doutor? O pesquisador pós-independente?

É também errado dizer que ele é "pós-doutor pela universidade x", porque o pós-doutorado, não sendo um nível de formação, não é outorgado por uma universidade. Sim, o pesquisador deve ter feito seu estágio pós-doutoral com conhecimento a aceitação de pesquisadores de uma universidade, e seus superiores. Mas, até onde sei, não há diplomas ou títulos outorgados. Aliás, esta atividade (um estágio de pesquisa após o doutorado) possivelmente se repete mais de uma vez na carreira de um pesquisador. Ao terminar um segundo estágio como este, ele se torna pós-pós doutor?

Convido o leitor a pesquisar as páginas das maiores universidades do planeta, e procurarem a denominação correspondente ao doutorado. Encontrarão que este é o maior título acadêmico outorgado pela universidade, o que deixa claro que o tal pós-doutorado não é um título.
Na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade do Colorado, nos EUA, onde obtive o doutorado, encontra-se isso sob o título PhD

PhD
The doctor of philosophy (PhD) is the terminal degree for individuals seeking a technical or research career in ECEE.


Não há duvidas, o Doutorado é o título terminal. Não há um título posterior. A página de títulos não fala de pós-doutorado. Também na pagina do MIT descreve-se o doutorado nos termos que usei no primeiro parágrafo deste post, e nada há, pelo menos na página do Dean de pós-graduação, sobre pós-doutorado.

É natural que queiramos dar destaque a um estagio de pesquisa em uma instituição importante.
Eu posso imaginar que, para um dado indivíduo, seu estagio pós-doutoral tenha sido o momento mais importante de sua carreira, e é natural que um pesquisador queira dar destaque a essa atividade em seu currículo. Mas é preciso parar a marcha da insensatez. Ha cerca de 1 ano preenchi uma ficha de
inscrição para uma corrida de rua, e as opcoes para formacao incluiam  mestre, doutor e pós-doutor. Marquei doutor, é claro. Eu realizei estágio  pós-doutoral no Imperial College, com bolsa do CNPq, e naturalmente isto não foi algo destituído de significado. Podemos até dizer que "fiz um pos-doutorado". Mas eu não sei o que significa dizer que sou pós-doutor.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sobre o 15 de outubro

Ontem recebi mensagens pelo dia do professor, o que me fez lembrar de como acho essa atividade estranhamente privilegiada. Refiro-me à palavra Professor em seu sentido mais amplo, não restrito ao que ocorre em uma escola ou universidade. Ao longo do dia de hoje, em algum lugar do planeta, alguém ensinou as primeiras letras a uma criança, ou a um adulto. Um outro alguém demonstrou, diversas vezes, a técnica correta do o-sotogari. Outro ainda auxiliou um estudante (ou talvez um não-estudante) na difícil tarefa de ler e compreender Espinoza, por meio de comentários, comparações e exemplos. Enquanto isso, alguém repetia, pela milésima vez, que aquele trecho pede non-legato, e não staccato. Um outro esclarecia que o Princípio da Incerteza decorre de uma característica intrínseca da própria estrutura matemática da mecânica quântica, surpreendendo o(a) estudante que até então acreditava em um modelo segundo o qual o elétron é muito pequeno e dá um pulo quando tentamos vê-lo. Todos esses, e muitos outros, são professores, e todos estranhamente privilegiados.

Para quem gosta de aprender, não há profissão melhor do que ensinar, e isto não é um jogo de palavras. Muito ao contrário da famosa provocação “quem sabe faz, quem não sabe ensina”, ninguém pode afirmar saber nada até colocar-se na posição de ensinar outra pessoa. Em geral, descobrirá que sabe muito pouco, o que para quem gosta de aprender é sempre uma boa notícia.

As vidas que tocamos por um breve instante continuam seus caminhos independentes, após uns poucos primeiros passos que supervisionamos. De certo modo, as experiências nestas diferentes trilhas retornam até nós, como se na prática tivéssemos várias vidas. Aliás, mesmo na vida própria que de fato temos, somos privilegiados pela única e verdadeira fonte da juventude: vivemos cercados de pessoas da mesma faixa etária. Conhecemos, superficialmente, é verdade, as mais recentes e estranhas tendências, as gírias mais carentes de sentido.

Limitados às vezes por condições adversas, e limitados sempre por nossa própria imperfeição, trabalhamos para que outros tenham condições melhores que as nossas, para que nos superem. Quantos podem dizer o mesmo em sua atividade profissional?

Quando sou chamado a conversar com jovens e adolescentes sobre a escolha de um curso superior, gosto de uma abordagem pouco convencional: digo que eles não devem perder muito tempo pensando na profissão ideal porque ela não existe. Existe no máximo uma direção (ou seriam várias direções para diferentes momentos de vida?) na qual, em média, nossas inclinações e aspirações parecem encontrar melhor ambiente. Mas é uma escolha que levará a dúvidas eternas. 

E a opção pela carreira de professor não é diferente. Tive e continuo a ter dúvidas sobre minha adequação e sobre a satisfação dos meus desejos nesta área. Lamento dizer que não tenho visto no ambiente universitário o convite à dúvida e à descoberta, o ceticismo humilde (sem o qual consideramo-nos sempre excelentes), a crítica serena e fundamentada, o debate lúcido sobre caminhos a seguir no próximo século. Vejo um ambiente intelectualmente viciado e auto-referente, dominado por uma pseudo-erudição rabugenta que se pretende revolucionária. Mas, se no meio de tudo isso, pessoas vêm nos dizer que saíram de lá melhores do que entraram, resta o consolo de que alguma coisa deu certo, o que é suficiente para não desistir. Obrigado.

domingo, 15 de julho de 2012

Verdadeiramente pelos estudantes

Acontece algo de muito arbitrário e pouco democrático quando entro em um avião. Eu e os demais passageiros tomamos assento em uma parte da cabine, mas um outro cidadão, denominado Piloto, segue um procedimento diferente. Ele senta-se em outro local, fisicamente isolado dos demais. Pior: ele passa a tomar uma série de decisões sem nos consultar.

De fato, não somos convidados a construir, coletivamente, celebrando a diversidade de nossas perspectivas, culturas, habilidades e percursos formativos, a melhor rota para a viagem. O piloto nem nos pergunta se devemos ou não voar a 10 ou a 11 mil metros. Há pouca evidencia de que o piloto seja mais inteligente do que eu, ou mais culto. Podemos ter também a certeza de que, do ponto de vista legal, eu e meus companheiros passageiros somos rigorosamente iguais a ele.

Bom, chega de ironia por hoje. É óbvio que não há nada de estranho aqui. Mas, não raro, vemos pessoas levantarem uma tese sobre igualdade que não está longe da minha brincadeira acima, exceto pelo fato de que falam a sério. Em particular, no ambiente universitário, veem-se com alguma frequência propostas que supostamente se inspiram no ideal democrático. Segundo esta linha, as distinções conservadoras entre mestres e aprendizes, por exemplo, deveriam dar lugar a um ambiente sem líderes ou liderados. Os estudantes devem construir com seus mestres os currículos. Devem opinar sobre novos cursos, dividir as tarefas da administração universitária, escolher seus dirigentes. Os debates em torno destas ideias orientam-se em torno de uma pergunta simples: somos ou não a favor dos estudantes?

Somos a favor, é claro. Eu costumo dizer aos meus estudantes que posso imaginar o ensino universitário sem salas ou recursos audiovisuais ---- e, se compararmos expansão de vagas e de infra-estrutura nos anos recentes poderemos ter de avaliar essa possibilidade bem antes do que pensamos. Também  imagino etapas do ensino sem a presença real do professor --- que meu sindicato não me ouça! O difícil mesmo é imaginar qualquer etapa do aprendizado sem estudantes.

Também é difícil não reconhecer a primazia do ensino de graduação na universidade. Ainda que nossa Constituição declare que ensino, pesquisa e extensão sejam indissociáveis (artigo 207),  não há uma só pessoa que deixe de pensar universidade, de maneira primordial, como a instituição onde se pratica o ensino de graduação. Aliás, esta afirmação de que três coisas são na verdade uma só mais parece uma tese teológica do que um artigo da Constituição, mas hoje o assunto não é esse. Enfim, não é exagero dizer que tudo na universidade funciona, em primeira análise, para o(a) estudante de graduação, e perguntar se estamos ou não a seu lado não chega a fazer sentido.

Eu e os estudantes adultos somos cidadãos plenos, sem distinção em direitos. Ocorre que, assim como não é prudente substituir o piloto pelo passageiro (inteligentíssimo!) da cadeira 4A, não é por acaso que a responsabilidade fundamental da atividade-fim da academia recai sobre o professor. Não por acaso, não porque o professor alcançou a iluminação, ou tornou-se pessoa com maiores direitos, mas porque ele percorreu, com êxito, um caminho que o levou a assumir essa responsabilidade. Na maior parte dos casos, o estudante sequer viveu o bastante para poder fazê-lo. Isto não é arbitrário, não é "um construto", mas um simples fato do mundo real. Ignorá-lo não passa de demagogia ou enganação pseudo-revolucionária.

Ouço com atenção os estudantes. Eles me ajudam a observar o quanto as práticas de ensino funcionam e não funcionam. São, por larga margem, o maior patrimônio do ambiente acadêmio, e sua razão de existir. Mas, no limitado domínio da minha especialidade, no dia em que tiver tanto a ensinar quanto a aprender com eles, só sobrarão duas alternativas: ou estarei ensinando uma obviedade inútil, a que o(a) estudante chegaria por si só, munido de senso crítico, livros e acesso à internet, ou estarei agindo com evidente incompetência, mal disfarçada de generosidade. Estudantes, eu, e o resto do país estaríamos melhor se eu me dedicasse a outra coisa.

Para os estudantes, o caminho que os leva docência universitária está aberto. Antes de trilhá-lo, sugiro que estudem nossos contracheques com atenção. Brincadeiras à parte, eu os receberei alegremente como colegas, e procurarei aprender, observadas minhas limitações, os detalhes interessantes de sua especialidade. Até lá, vamos trabalhar, estudar, deixando a demagogia para quem não tem outro recurso.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Há muitas formas de não saber: Imprecisão e aleatoriedade

É provavelmente inevitável que as palavras tenham, em seu sentido cotidiano, um significado mais vago do que o aceitável em um texto cientifico. E transplantá-las de seu habitat cientifico para o contexto do dia a dia é uma receita para o desastre. Algumas das interpretações mais equivocadas sobre Relatividade, Mecânica Quântica, o Teorema de Gödel e a Seleção Natural, apenas para citar alguns exemplos, podem ser reduzidas a problemas de semântica em torno de palavras como invariância, incerteza, prova, evolução e aleatoriedade.

Em particular, a palavra incerteza, em sua acepção cotidiana, representa uma combinação de diferentes ideias. Estas vão desde questões técnicas sobre instrumentos de medida, sobre nossa incapacidade de repetir certos experimentos exatamente nas mesmas condições, até questões fundamentais e difíceis de responder sobre a estrutura do universo e sobre como podemos (ou não) compreendê-la. É preciso ser muito mais preciso do que costumamos ser sobre incerteza.

Existe uma incerteza relativa à capacidade limitada de mensurar ou estimar variáveis. Na verdade, existe mais de uma, representada pelas palavras precisão e acurácia, que são quase sinônimos no cotidiano mas manifestam-se como conceitos sutilmente diferentes.

Para medir ou estimar o valor de uma grandeza física, um sistema de medida interage com o objeto de estudo. Este sistema pode ser um simples objeto ou um aparelho complexo, com centenas de partes constituintes. A interação entre aparelho e objeto de medida pode ser simplesmente colocá-los em proximidade física e observar o resultado a olho nu, ou um complexo procedimento experimental, que chega a um valor estimado da variável medida por meio de uma série de raciocínios, deduções e cálculos.

Seja simples ou complexo, este procedimento, se for repetido várias vezes sobre o mesmo objeto, não fornece rigorosamente ao mesmo resultado, por mais cuidado que tenhamos. Ao medir um comprimento diversas vezes, eu provavelmente ajustarei a fita métrica em lugares ligeiramente diferentes. Ao medir um intervalo de tempo diversas vezes, eu provavelmente acionarei o cronômetro em instantes ligeramente diferentes. O próprio aparelho está sob efeito de outros fenômenos além daquele que se deseja observar. Estes outros fenômenos, embora secundários, flutuam aleatoriamente entre uma medida e outra. Seja como for, há uma variação em medidas feitas supostamente nas mesmas condições. Chama-se imprecisão a esta particular forma de incerteza quanto a medidas.

Por outro lado, pode existir um erro sistemático na minha medida, que afasta o resultado de seu valor real. Eu posso medir pesos repetidamente com uma balança mal ajustada. Mesmo que o resultado seja parecido em diversas medidas (o que indicaria boa precisão), ele estaria longe do valor real. A esta segunda forma de incerteza chama-se inacurácia, embora ela seja frequentemente confundida com imprecisão cotidianamente, e até em textos técnicos menos cuidadosos.

O parágrafo anterior pode nos deixar com uma outra dúvida: se há imprecisão e inacurácia em qualquer medida, qual é o "valor correto" em relação ao qual medimos a acurácia? Bom, é possível convencionar os valores de unidades de medida (o quilograma, o segundo, etc.) e calibrar instrumentos a partir destes valores. Não que isto seja óbvio ou fácil, mas é um assunto cotidianamente resolvido pelos especialistas em metrologia.
O uso mais famoso da palavra "incerteza" vai ser encontrado em Heiseberg e seu comentado (e pouco compreendido) Princípio. Em apresentações simplificadas ele costuma ser confundido com uma questão experimental de medidas, o que não é correto. Ou pelo menos não é completo. Ocorre que a imprecisão entre as medidas de certos pares de variáveis são relacionadas. Um experimento preciso de localização do elétron é necessariamente pouco preciso quanto à velocidade da particula e vice-versa. Isto vem da própria estrutura matemática dos modelos físicos envolvidos, de forma que a historinha que ouvimos nos bancos escolares --- sobre o elétron ser "muito pequeno" e por isso ser sacolejado pelo instrumento de medida --- é pouco mais do que uma alegoria.

Seja como for, o fato de estas duas imprecisões serem dependentes, de forma que a diminuição de uma force a um aumento da outra, constitui o princípio da incerteza. Tempo e energia, além de outros pares de variáveis, têm também esta propriedade. Se sei com precisão a duração de um fenômeno, haverá imprecisão sobre a energia que ele libera ou absorve. E assim por diante. Veja que esta "incerteza" relaciona a imprecisão de nosso conhecimento simultâneo sobre duas ou mais variáveis.
Agora vamos sair do laboratório, e observar um "experimento" radicalmente diferente.

Os capitães cumprimentam-se ; cumprimentam o árbitro. Apontam para a moeda e falam algo. O árbitro lança a moeda para cima e mostra aos dois atletas o resultado.

Aquilo que lamentamos como inconveniente em nosso experimento de laboratório é essencial aqui. Confiamos que não seja possível antecipar o resultado do experimento. Chamar esta variação de "imprecisão" talvez faça pouco sentido aqui, ja que esta não seria uma limitação de nosso experimento, mas sim uma caracteristica desejada. Faz mais sentido falar em "aleatoriedade". Os experimentos tais como lançar uma moeda e verificar se temos cara ou coroa, lançar um dado e ver qual face fica voltada para cima, e outros, são aleatórios.

Eu já havia usado a palavra "aleatóriamente" acima, ao citar as razões pelas quais existe imprecisão em medidas. Havia dito que, além da variável que queremos medir, o instrumento de medidas é afetado por outros fatores aleatórios. Será então que este "aleatório" e aquela "imprecisão" seriam faces da mesma moeda, com o perdão do trocadilho?

Vejamos o caso da moeda. Não seria possível, com conhecimento preciso da massa da moeda, e de como ela está distribuída, e do movimento feito pelo árbitro para lançá-la, prever com certa precisão se o resultado seria cara ou coroa? Em tese, sim. Aliás, sabe-se que, com um pouco de treino, ou talvez muito treino, pessoas conseguem obter caras ou coroas à vontade. Acho até que a moeda é apresentada por uma parte neutra na disputa justamente para evitar esta possibilidade.

Assim, será que existe "verdadeira" aleatoriedade? Será que, por puro pragmatismo, não usamos modelos probabilísticos para trabalharmos com objetos e fenômenos que, com maior estudo, talvez no futuro, revelem-se não-aleatórios, ou determinísticos, como se diz? Ou talvez precisemos de modelos probabilísticos porque os objetos são tantos que seria impraticável estudá-los de maneira determinística?

Esta é uma questão muito interessante e polêmica. De uma forma um tanto simplificada, pode-se pensar na famosa declaração atribuída a Einstein, "Deus não joga dados", como uma declaração da preponderância do determinismo nos modelos científicos. A Ciência poderia usar, por conveniência, modelos probabilísticos, mas a princípio, se estudarmos cuidadosamente e bastante, as relações entre variáveis Físicas seriam conhecidas com a precisão possível dados nossos instrumentos de medida. A interpretação mais comum para a Mecânica Quântica, uma teoria excepcionalmente bem sucedida em explicar resultados experimentais, favorece uma visão discordante: suas previsões são, apenas e fundamentalmente, probabilidades, e as incertezas quanto a medidas dos objetos modelados por ela são intrínsecas e, em certo nível, insuperáveis. Existiria, então, uma verdadeira aleatoriedade, e não apenas uma falta de conhecimento detalhado. Até onde sei --- digamos, na limitada precisão de meu conhecimento --- esta questão ainda desperta intenso debate. Não sobre o que se pode saber, mas sobre qual a forma exata do nosso inevitável desconhecimento.