sexta-feira, 11 de maio de 2012

Há muitas formas de não saber: Imprecisão e aleatoriedade

É provavelmente inevitável que as palavras tenham, em seu sentido cotidiano, um significado mais vago do que o aceitável em um texto cientifico. E transplantá-las de seu habitat cientifico para o contexto do dia a dia é uma receita para o desastre. Algumas das interpretações mais equivocadas sobre Relatividade, Mecânica Quântica, o Teorema de Gödel e a Seleção Natural, apenas para citar alguns exemplos, podem ser reduzidas a problemas de semântica em torno de palavras como invariância, incerteza, prova, evolução e aleatoriedade.

Em particular, a palavra incerteza, em sua acepção cotidiana, representa uma combinação de diferentes ideias. Estas vão desde questões técnicas sobre instrumentos de medida, sobre nossa incapacidade de repetir certos experimentos exatamente nas mesmas condições, até questões fundamentais e difíceis de responder sobre a estrutura do universo e sobre como podemos (ou não) compreendê-la. É preciso ser muito mais preciso do que costumamos ser sobre incerteza.

Existe uma incerteza relativa à capacidade limitada de mensurar ou estimar variáveis. Na verdade, existe mais de uma, representada pelas palavras precisão e acurácia, que são quase sinônimos no cotidiano mas manifestam-se como conceitos sutilmente diferentes.

Para medir ou estimar o valor de uma grandeza física, um sistema de medida interage com o objeto de estudo. Este sistema pode ser um simples objeto ou um aparelho complexo, com centenas de partes constituintes. A interação entre aparelho e objeto de medida pode ser simplesmente colocá-los em proximidade física e observar o resultado a olho nu, ou um complexo procedimento experimental, que chega a um valor estimado da variável medida por meio de uma série de raciocínios, deduções e cálculos.

Seja simples ou complexo, este procedimento, se for repetido várias vezes sobre o mesmo objeto, não fornece rigorosamente ao mesmo resultado, por mais cuidado que tenhamos. Ao medir um comprimento diversas vezes, eu provavelmente ajustarei a fita métrica em lugares ligeiramente diferentes. Ao medir um intervalo de tempo diversas vezes, eu provavelmente acionarei o cronômetro em instantes ligeramente diferentes. O próprio aparelho está sob efeito de outros fenômenos além daquele que se deseja observar. Estes outros fenômenos, embora secundários, flutuam aleatoriamente entre uma medida e outra. Seja como for, há uma variação em medidas feitas supostamente nas mesmas condições. Chama-se imprecisão a esta particular forma de incerteza quanto a medidas.

Por outro lado, pode existir um erro sistemático na minha medida, que afasta o resultado de seu valor real. Eu posso medir pesos repetidamente com uma balança mal ajustada. Mesmo que o resultado seja parecido em diversas medidas (o que indicaria boa precisão), ele estaria longe do valor real. A esta segunda forma de incerteza chama-se inacurácia, embora ela seja frequentemente confundida com imprecisão cotidianamente, e até em textos técnicos menos cuidadosos.

O parágrafo anterior pode nos deixar com uma outra dúvida: se há imprecisão e inacurácia em qualquer medida, qual é o "valor correto" em relação ao qual medimos a acurácia? Bom, é possível convencionar os valores de unidades de medida (o quilograma, o segundo, etc.) e calibrar instrumentos a partir destes valores. Não que isto seja óbvio ou fácil, mas é um assunto cotidianamente resolvido pelos especialistas em metrologia.
O uso mais famoso da palavra "incerteza" vai ser encontrado em Heiseberg e seu comentado (e pouco compreendido) Princípio. Em apresentações simplificadas ele costuma ser confundido com uma questão experimental de medidas, o que não é correto. Ou pelo menos não é completo. Ocorre que a imprecisão entre as medidas de certos pares de variáveis são relacionadas. Um experimento preciso de localização do elétron é necessariamente pouco preciso quanto à velocidade da particula e vice-versa. Isto vem da própria estrutura matemática dos modelos físicos envolvidos, de forma que a historinha que ouvimos nos bancos escolares --- sobre o elétron ser "muito pequeno" e por isso ser sacolejado pelo instrumento de medida --- é pouco mais do que uma alegoria.

Seja como for, o fato de estas duas imprecisões serem dependentes, de forma que a diminuição de uma force a um aumento da outra, constitui o princípio da incerteza. Tempo e energia, além de outros pares de variáveis, têm também esta propriedade. Se sei com precisão a duração de um fenômeno, haverá imprecisão sobre a energia que ele libera ou absorve. E assim por diante. Veja que esta "incerteza" relaciona a imprecisão de nosso conhecimento simultâneo sobre duas ou mais variáveis.
Agora vamos sair do laboratório, e observar um "experimento" radicalmente diferente.

Os capitães cumprimentam-se ; cumprimentam o árbitro. Apontam para a moeda e falam algo. O árbitro lança a moeda para cima e mostra aos dois atletas o resultado.

Aquilo que lamentamos como inconveniente em nosso experimento de laboratório é essencial aqui. Confiamos que não seja possível antecipar o resultado do experimento. Chamar esta variação de "imprecisão" talvez faça pouco sentido aqui, ja que esta não seria uma limitação de nosso experimento, mas sim uma caracteristica desejada. Faz mais sentido falar em "aleatoriedade". Os experimentos tais como lançar uma moeda e verificar se temos cara ou coroa, lançar um dado e ver qual face fica voltada para cima, e outros, são aleatórios.

Eu já havia usado a palavra "aleatóriamente" acima, ao citar as razões pelas quais existe imprecisão em medidas. Havia dito que, além da variável que queremos medir, o instrumento de medidas é afetado por outros fatores aleatórios. Será então que este "aleatório" e aquela "imprecisão" seriam faces da mesma moeda, com o perdão do trocadilho?

Vejamos o caso da moeda. Não seria possível, com conhecimento preciso da massa da moeda, e de como ela está distribuída, e do movimento feito pelo árbitro para lançá-la, prever com certa precisão se o resultado seria cara ou coroa? Em tese, sim. Aliás, sabe-se que, com um pouco de treino, ou talvez muito treino, pessoas conseguem obter caras ou coroas à vontade. Acho até que a moeda é apresentada por uma parte neutra na disputa justamente para evitar esta possibilidade.

Assim, será que existe "verdadeira" aleatoriedade? Será que, por puro pragmatismo, não usamos modelos probabilísticos para trabalharmos com objetos e fenômenos que, com maior estudo, talvez no futuro, revelem-se não-aleatórios, ou determinísticos, como se diz? Ou talvez precisemos de modelos probabilísticos porque os objetos são tantos que seria impraticável estudá-los de maneira determinística?

Esta é uma questão muito interessante e polêmica. De uma forma um tanto simplificada, pode-se pensar na famosa declaração atribuída a Einstein, "Deus não joga dados", como uma declaração da preponderância do determinismo nos modelos científicos. A Ciência poderia usar, por conveniência, modelos probabilísticos, mas a princípio, se estudarmos cuidadosamente e bastante, as relações entre variáveis Físicas seriam conhecidas com a precisão possível dados nossos instrumentos de medida. A interpretação mais comum para a Mecânica Quântica, uma teoria excepcionalmente bem sucedida em explicar resultados experimentais, favorece uma visão discordante: suas previsões são, apenas e fundamentalmente, probabilidades, e as incertezas quanto a medidas dos objetos modelados por ela são intrínsecas e, em certo nível, insuperáveis. Existiria, então, uma verdadeira aleatoriedade, e não apenas uma falta de conhecimento detalhado. Até onde sei --- digamos, na limitada precisão de meu conhecimento --- esta questão ainda desperta intenso debate. Não sobre o que se pode saber, mas sobre qual a forma exata do nosso inevitável desconhecimento.

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