quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sobre o 15 de outubro

Ontem recebi mensagens pelo dia do professor, o que me fez lembrar de como acho essa atividade estranhamente privilegiada. Refiro-me à palavra Professor em seu sentido mais amplo, não restrito ao que ocorre em uma escola ou universidade. Ao longo do dia de hoje, em algum lugar do planeta, alguém ensinou as primeiras letras a uma criança, ou a um adulto. Um outro alguém demonstrou, diversas vezes, a técnica correta do o-sotogari. Outro ainda auxiliou um estudante (ou talvez um não-estudante) na difícil tarefa de ler e compreender Espinoza, por meio de comentários, comparações e exemplos. Enquanto isso, alguém repetia, pela milésima vez, que aquele trecho pede non-legato, e não staccato. Um outro esclarecia que o Princípio da Incerteza decorre de uma característica intrínseca da própria estrutura matemática da mecânica quântica, surpreendendo o(a) estudante que até então acreditava em um modelo segundo o qual o elétron é muito pequeno e dá um pulo quando tentamos vê-lo. Todos esses, e muitos outros, são professores, e todos estranhamente privilegiados.

Para quem gosta de aprender, não há profissão melhor do que ensinar, e isto não é um jogo de palavras. Muito ao contrário da famosa provocação “quem sabe faz, quem não sabe ensina”, ninguém pode afirmar saber nada até colocar-se na posição de ensinar outra pessoa. Em geral, descobrirá que sabe muito pouco, o que para quem gosta de aprender é sempre uma boa notícia.

As vidas que tocamos por um breve instante continuam seus caminhos independentes, após uns poucos primeiros passos que supervisionamos. De certo modo, as experiências nestas diferentes trilhas retornam até nós, como se na prática tivéssemos várias vidas. Aliás, mesmo na vida própria que de fato temos, somos privilegiados pela única e verdadeira fonte da juventude: vivemos cercados de pessoas da mesma faixa etária. Conhecemos, superficialmente, é verdade, as mais recentes e estranhas tendências, as gírias mais carentes de sentido.

Limitados às vezes por condições adversas, e limitados sempre por nossa própria imperfeição, trabalhamos para que outros tenham condições melhores que as nossas, para que nos superem. Quantos podem dizer o mesmo em sua atividade profissional?

Quando sou chamado a conversar com jovens e adolescentes sobre a escolha de um curso superior, gosto de uma abordagem pouco convencional: digo que eles não devem perder muito tempo pensando na profissão ideal porque ela não existe. Existe no máximo uma direção (ou seriam várias direções para diferentes momentos de vida?) na qual, em média, nossas inclinações e aspirações parecem encontrar melhor ambiente. Mas é uma escolha que levará a dúvidas eternas. 

E a opção pela carreira de professor não é diferente. Tive e continuo a ter dúvidas sobre minha adequação e sobre a satisfação dos meus desejos nesta área. Lamento dizer que não tenho visto no ambiente universitário o convite à dúvida e à descoberta, o ceticismo humilde (sem o qual consideramo-nos sempre excelentes), a crítica serena e fundamentada, o debate lúcido sobre caminhos a seguir no próximo século. Vejo um ambiente intelectualmente viciado e auto-referente, dominado por uma pseudo-erudição rabugenta que se pretende revolucionária. Mas, se no meio de tudo isso, pessoas vêm nos dizer que saíram de lá melhores do que entraram, resta o consolo de que alguma coisa deu certo, o que é suficiente para não desistir. Obrigado.

domingo, 15 de julho de 2012

Verdadeiramente pelos estudantes

Acontece algo de muito arbitrário e pouco democrático quando entro em um avião. Eu e os demais passageiros tomamos assento em uma parte da cabine, mas um outro cidadão, denominado Piloto, segue um procedimento diferente. Ele senta-se em outro local, fisicamente isolado dos demais. Pior: ele passa a tomar uma série de decisões sem nos consultar.

De fato, não somos convidados a construir, coletivamente, celebrando a diversidade de nossas perspectivas, culturas, habilidades e percursos formativos, a melhor rota para a viagem. O piloto nem nos pergunta se devemos ou não voar a 10 ou a 11 mil metros. Há pouca evidencia de que o piloto seja mais inteligente do que eu, ou mais culto. Podemos ter também a certeza de que, do ponto de vista legal, eu e meus companheiros passageiros somos rigorosamente iguais a ele.

Bom, chega de ironia por hoje. É óbvio que não há nada de estranho aqui. Mas, não raro, vemos pessoas levantarem uma tese sobre igualdade que não está longe da minha brincadeira acima, exceto pelo fato de que falam a sério. Em particular, no ambiente universitário, veem-se com alguma frequência propostas que supostamente se inspiram no ideal democrático. Segundo esta linha, as distinções conservadoras entre mestres e aprendizes, por exemplo, deveriam dar lugar a um ambiente sem líderes ou liderados. Os estudantes devem construir com seus mestres os currículos. Devem opinar sobre novos cursos, dividir as tarefas da administração universitária, escolher seus dirigentes. Os debates em torno destas ideias orientam-se em torno de uma pergunta simples: somos ou não a favor dos estudantes?

Somos a favor, é claro. Eu costumo dizer aos meus estudantes que posso imaginar o ensino universitário sem salas ou recursos audiovisuais ---- e, se compararmos expansão de vagas e de infra-estrutura nos anos recentes poderemos ter de avaliar essa possibilidade bem antes do que pensamos. Também  imagino etapas do ensino sem a presença real do professor --- que meu sindicato não me ouça! O difícil mesmo é imaginar qualquer etapa do aprendizado sem estudantes.

Também é difícil não reconhecer a primazia do ensino de graduação na universidade. Ainda que nossa Constituição declare que ensino, pesquisa e extensão sejam indissociáveis (artigo 207),  não há uma só pessoa que deixe de pensar universidade, de maneira primordial, como a instituição onde se pratica o ensino de graduação. Aliás, esta afirmação de que três coisas são na verdade uma só mais parece uma tese teológica do que um artigo da Constituição, mas hoje o assunto não é esse. Enfim, não é exagero dizer que tudo na universidade funciona, em primeira análise, para o(a) estudante de graduação, e perguntar se estamos ou não a seu lado não chega a fazer sentido.

Eu e os estudantes adultos somos cidadãos plenos, sem distinção em direitos. Ocorre que, assim como não é prudente substituir o piloto pelo passageiro (inteligentíssimo!) da cadeira 4A, não é por acaso que a responsabilidade fundamental da atividade-fim da academia recai sobre o professor. Não por acaso, não porque o professor alcançou a iluminação, ou tornou-se pessoa com maiores direitos, mas porque ele percorreu, com êxito, um caminho que o levou a assumir essa responsabilidade. Na maior parte dos casos, o estudante sequer viveu o bastante para poder fazê-lo. Isto não é arbitrário, não é "um construto", mas um simples fato do mundo real. Ignorá-lo não passa de demagogia ou enganação pseudo-revolucionária.

Ouço com atenção os estudantes. Eles me ajudam a observar o quanto as práticas de ensino funcionam e não funcionam. São, por larga margem, o maior patrimônio do ambiente acadêmio, e sua razão de existir. Mas, no limitado domínio da minha especialidade, no dia em que tiver tanto a ensinar quanto a aprender com eles, só sobrarão duas alternativas: ou estarei ensinando uma obviedade inútil, a que o(a) estudante chegaria por si só, munido de senso crítico, livros e acesso à internet, ou estarei agindo com evidente incompetência, mal disfarçada de generosidade. Estudantes, eu, e o resto do país estaríamos melhor se eu me dedicasse a outra coisa.

Para os estudantes, o caminho que os leva docência universitária está aberto. Antes de trilhá-lo, sugiro que estudem nossos contracheques com atenção. Brincadeiras à parte, eu os receberei alegremente como colegas, e procurarei aprender, observadas minhas limitações, os detalhes interessantes de sua especialidade. Até lá, vamos trabalhar, estudar, deixando a demagogia para quem não tem outro recurso.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Há muitas formas de não saber: Imprecisão e aleatoriedade

É provavelmente inevitável que as palavras tenham, em seu sentido cotidiano, um significado mais vago do que o aceitável em um texto cientifico. E transplantá-las de seu habitat cientifico para o contexto do dia a dia é uma receita para o desastre. Algumas das interpretações mais equivocadas sobre Relatividade, Mecânica Quântica, o Teorema de Gödel e a Seleção Natural, apenas para citar alguns exemplos, podem ser reduzidas a problemas de semântica em torno de palavras como invariância, incerteza, prova, evolução e aleatoriedade.

Em particular, a palavra incerteza, em sua acepção cotidiana, representa uma combinação de diferentes ideias. Estas vão desde questões técnicas sobre instrumentos de medida, sobre nossa incapacidade de repetir certos experimentos exatamente nas mesmas condições, até questões fundamentais e difíceis de responder sobre a estrutura do universo e sobre como podemos (ou não) compreendê-la. É preciso ser muito mais preciso do que costumamos ser sobre incerteza.

Existe uma incerteza relativa à capacidade limitada de mensurar ou estimar variáveis. Na verdade, existe mais de uma, representada pelas palavras precisão e acurácia, que são quase sinônimos no cotidiano mas manifestam-se como conceitos sutilmente diferentes.

Para medir ou estimar o valor de uma grandeza física, um sistema de medida interage com o objeto de estudo. Este sistema pode ser um simples objeto ou um aparelho complexo, com centenas de partes constituintes. A interação entre aparelho e objeto de medida pode ser simplesmente colocá-los em proximidade física e observar o resultado a olho nu, ou um complexo procedimento experimental, que chega a um valor estimado da variável medida por meio de uma série de raciocínios, deduções e cálculos.

Seja simples ou complexo, este procedimento, se for repetido várias vezes sobre o mesmo objeto, não fornece rigorosamente ao mesmo resultado, por mais cuidado que tenhamos. Ao medir um comprimento diversas vezes, eu provavelmente ajustarei a fita métrica em lugares ligeiramente diferentes. Ao medir um intervalo de tempo diversas vezes, eu provavelmente acionarei o cronômetro em instantes ligeramente diferentes. O próprio aparelho está sob efeito de outros fenômenos além daquele que se deseja observar. Estes outros fenômenos, embora secundários, flutuam aleatoriamente entre uma medida e outra. Seja como for, há uma variação em medidas feitas supostamente nas mesmas condições. Chama-se imprecisão a esta particular forma de incerteza quanto a medidas.

Por outro lado, pode existir um erro sistemático na minha medida, que afasta o resultado de seu valor real. Eu posso medir pesos repetidamente com uma balança mal ajustada. Mesmo que o resultado seja parecido em diversas medidas (o que indicaria boa precisão), ele estaria longe do valor real. A esta segunda forma de incerteza chama-se inacurácia, embora ela seja frequentemente confundida com imprecisão cotidianamente, e até em textos técnicos menos cuidadosos.

O parágrafo anterior pode nos deixar com uma outra dúvida: se há imprecisão e inacurácia em qualquer medida, qual é o "valor correto" em relação ao qual medimos a acurácia? Bom, é possível convencionar os valores de unidades de medida (o quilograma, o segundo, etc.) e calibrar instrumentos a partir destes valores. Não que isto seja óbvio ou fácil, mas é um assunto cotidianamente resolvido pelos especialistas em metrologia.
O uso mais famoso da palavra "incerteza" vai ser encontrado em Heiseberg e seu comentado (e pouco compreendido) Princípio. Em apresentações simplificadas ele costuma ser confundido com uma questão experimental de medidas, o que não é correto. Ou pelo menos não é completo. Ocorre que a imprecisão entre as medidas de certos pares de variáveis são relacionadas. Um experimento preciso de localização do elétron é necessariamente pouco preciso quanto à velocidade da particula e vice-versa. Isto vem da própria estrutura matemática dos modelos físicos envolvidos, de forma que a historinha que ouvimos nos bancos escolares --- sobre o elétron ser "muito pequeno" e por isso ser sacolejado pelo instrumento de medida --- é pouco mais do que uma alegoria.

Seja como for, o fato de estas duas imprecisões serem dependentes, de forma que a diminuição de uma force a um aumento da outra, constitui o princípio da incerteza. Tempo e energia, além de outros pares de variáveis, têm também esta propriedade. Se sei com precisão a duração de um fenômeno, haverá imprecisão sobre a energia que ele libera ou absorve. E assim por diante. Veja que esta "incerteza" relaciona a imprecisão de nosso conhecimento simultâneo sobre duas ou mais variáveis.
Agora vamos sair do laboratório, e observar um "experimento" radicalmente diferente.

Os capitães cumprimentam-se ; cumprimentam o árbitro. Apontam para a moeda e falam algo. O árbitro lança a moeda para cima e mostra aos dois atletas o resultado.

Aquilo que lamentamos como inconveniente em nosso experimento de laboratório é essencial aqui. Confiamos que não seja possível antecipar o resultado do experimento. Chamar esta variação de "imprecisão" talvez faça pouco sentido aqui, ja que esta não seria uma limitação de nosso experimento, mas sim uma caracteristica desejada. Faz mais sentido falar em "aleatoriedade". Os experimentos tais como lançar uma moeda e verificar se temos cara ou coroa, lançar um dado e ver qual face fica voltada para cima, e outros, são aleatórios.

Eu já havia usado a palavra "aleatóriamente" acima, ao citar as razões pelas quais existe imprecisão em medidas. Havia dito que, além da variável que queremos medir, o instrumento de medidas é afetado por outros fatores aleatórios. Será então que este "aleatório" e aquela "imprecisão" seriam faces da mesma moeda, com o perdão do trocadilho?

Vejamos o caso da moeda. Não seria possível, com conhecimento preciso da massa da moeda, e de como ela está distribuída, e do movimento feito pelo árbitro para lançá-la, prever com certa precisão se o resultado seria cara ou coroa? Em tese, sim. Aliás, sabe-se que, com um pouco de treino, ou talvez muito treino, pessoas conseguem obter caras ou coroas à vontade. Acho até que a moeda é apresentada por uma parte neutra na disputa justamente para evitar esta possibilidade.

Assim, será que existe "verdadeira" aleatoriedade? Será que, por puro pragmatismo, não usamos modelos probabilísticos para trabalharmos com objetos e fenômenos que, com maior estudo, talvez no futuro, revelem-se não-aleatórios, ou determinísticos, como se diz? Ou talvez precisemos de modelos probabilísticos porque os objetos são tantos que seria impraticável estudá-los de maneira determinística?

Esta é uma questão muito interessante e polêmica. De uma forma um tanto simplificada, pode-se pensar na famosa declaração atribuída a Einstein, "Deus não joga dados", como uma declaração da preponderância do determinismo nos modelos científicos. A Ciência poderia usar, por conveniência, modelos probabilísticos, mas a princípio, se estudarmos cuidadosamente e bastante, as relações entre variáveis Físicas seriam conhecidas com a precisão possível dados nossos instrumentos de medida. A interpretação mais comum para a Mecânica Quântica, uma teoria excepcionalmente bem sucedida em explicar resultados experimentais, favorece uma visão discordante: suas previsões são, apenas e fundamentalmente, probabilidades, e as incertezas quanto a medidas dos objetos modelados por ela são intrínsecas e, em certo nível, insuperáveis. Existiria, então, uma verdadeira aleatoriedade, e não apenas uma falta de conhecimento detalhado. Até onde sei --- digamos, na limitada precisão de meu conhecimento --- esta questão ainda desperta intenso debate. Não sobre o que se pode saber, mas sobre qual a forma exata do nosso inevitável desconhecimento.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Como se sabe

Há boas chances de que você tenha ouvido algo equivalente às seguintes narrativas:

Narrativa 1: As ideias de Colombo foram vistas com descrédito por pessoas que defendiam o modelo de uma Terra plana. Elas o alertaram que seu navio ia cair no vazio quando se afastasse muito da Europa.

Narrativa 2: Darwin era um opositor da ideia do uso e desuso, e estava convencido de que traços adquiridos durante a vida de um animal não podiam ser passados à sua descendência.

Estes são fatos comumente comentados sobre Ciência, considerados até certo pontos banais. Pontos pacíficos. Coisas que todos sabemos. Um estudante que se prepara para o exame vestibular e não sabe um desses fatos deveria se esforçar mais em seus estudos.

A outra coisa que há de comum nas afirmações acima é que estão ambas erradas.

Não é que elas tenham sido consideradas corretas por algum período de tempo, e agora nosso conhecimento avançou para considerá-las erradas. Elas estão erradas como sempre estiveram, e da forma como foram apresentadas acima constituem uma caricatura do conhecimento científico.

A teoria da Terra Plana tinha seus adeptos na Antiguidade. Ela parece explicar de forma simples um aspecto da realidade à nossa volta (a Terra parece plana...), e evita o problema de explicar como as pessoas do "lado de baixo" não caem no abismo. Isto pode parecer um problema risível, mas imagine resolvê-lo sem apelar para conhecimentos de Física que não existiam à época, como a Gravidade.

Por outro lado, se olharmos com cuidado, existem elementos para sustentar uma Teoria da Terra Redonda muito antes das fotos de Satélite. Ela explica com naturalidade, por exemplo, as fases da Lua e de outros corpos do Sistema Solar (há algo redondo projetando uma sombra sobre eles), e a diferença das trajetórias do Sol em diferentes latitudes. Na verdade, com uma observação cuidadosa da sombra de objetos ao meio-dia, em lugares diferentes, na mesma data de anos diferentes, Eratóstenes de Alexandria conseguiu, aplicando geometria, não apenas concluir que a Terra era redonda, mas calcular uma estimativa de seu raio.

Assim, e ao contrário do que se costuma citar, a maioria das pessoas cultas da Europa, mesmo ao final da Idade Média, defendiam uma Terra redonda. Mas então por que foi vista com ceticismo a ideia de Colombo de se chegar ao leste pelo oeste? Ora, porque a Terra é muito grande, e simplesmente não se viam condições para se cumprir a trajetória planejada antes que os mantimentos acabassem.

E, curiosamente, os críticos de Colombo estavam certos. A missão não terminou em tragédia por um pequeno detalhe que nem eles nem Colombo conheciam: um outro continente no meio do caminho!

Já a questão de Darwin é ainda mais curiosa. Se alguém, ao falar das teorias sobre evolução, opõe Darwin a Lamarck, dizendo que o primeiro não acreditava em uso e desuso, com toda certeza nunca leu A Origem das Espécies, ou teria encontrado inúmeros trechos dos quais se compreende que Darwin via, sim, o Uso e Desuso como uma possibilidade. Darwin, naturalmente, insistia na Seleção Natural como o elemento central da diferenciação gradual entre as espécies, mas não via esta ideia como oposta ao Uso e Desuso. Aliás, seria muito estranho que alguém pudesse à sua época, sem conhecimentos sobre genética, descartar apenas por lógica pura a possibilidade do uso e desuso.

Em tempo, segundo Stephan Gould, Darwin jamais menciona o pescoco das girafas em seu livro, e Lamarck o faz muito ligeiramente.

Por que ideias que claramente não correspondem à realidade perpetuam-se? Eu tenho que supor que elas sejam repetidas (ou pelo menos não sejam contestadas) na escola. Temo que educadores caiam na tentação de identificar modelos simplificados, necessários para uma primeira apresentação de uma ideia complexa, com a realidade a ser apresentada. Isto acaba por gerar, e os exemplos são vários, a situação na qual o conteúdo apresentado não apenas é teórico, no sentido de uma aparente desconexão com a vida cotidiana, mas é na verdade uma construção arbitrária e pouco conectada até mesmo com o objeto de estudo. Torna-se um pacote de informação que se inicia e termina no ritual escolar.

Mas chega de criticas aos meus colegas. Em um próprio post, veremos pedaços de informação que recebemos todos os dias dos meios de comunicação, e que não fazem sentido algum.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Informação e Ruído Parte 1: A compressão

A forma de se ouvir música mudou muito, com a introdução da gravação digital (primeiramente ainda prensada em vinil), seguida da reprodução digital em discos ópticos, e mais recentemente da distribuição sem mídia, muitas vezes executada em dispositivos portáteis, e geralmente codificada em arquivos de áudio com algum tipo de compressão.

Toda esta mudança é consequência de avanços e de decisões técnicas que afetam o resultado geral. O quanto este resultado é bom ou ruim, como em tudo que envolve apreciação, está aberto a um debate eterno. Mas, se o debate não pode e não deve ser terminado, podemos pelo menos discutir argumentos compatíveis com os conceitos técnicos envolvidos, e tentar separar o que é uma opção pessoal do que é a  verdade necessária. 

O assunto é complexo, e deve ser atacado pelas beiradas. Uma das beiradas mais interessantes tem a ver com a compressão de dados, que torna os arquivos digitais menores. Mesmo entre os  que não têm problema com a digitalização do áudio, a compressão em formatos como o MP3 é alvo de criticas. Existem argumentos corretos que suportam estas criticas, mas eu gostaria de discutir primeiramente um argumento frequente, e errado, mais ou menos nesta linha: "Um arquivo MP3 é 10 vezes menor do que o arquivo WAV (formato do CD). Não é matematicamente óbvio que, para chegar a esta taxa de compressão, alguma informação foi perdida?" A resposta é: não, isto não é óbvio. Na verdade, este é um bom exemplo de como nem toda frase que contém números ancora-se em uma certeza matemática.

A princípio, não é possível dizer, apenas pela taxa de compressão, o que foi perdido entre o arquivo original e o resultante. Curiosamente, esta perda pode ter sido até zero --- rigorosamente zero. Não é o caso do MP3 e de outros formatos de áudio comprimido, que de fato introduzem perdas. Mas a compressão sem perdas é interessante o bastante para fazermos um desvio.

Pode-se então manipular um arquivo, reduzir significativamente seu tamanho, e preservar rigorosamente toda a informação contida? Na verdade, isto é bastante comum, e todos os que já compactaram algum dado em seu computador, gerando arquivos com extensão ZIP ou ARJ, por exemplo conhecem exemplos.

Eu acabo de realizar a compressão de um arquivo de texto, originalmente de 25 kBytes, e obtive um novo arquivo, de aproximadamente 8 kBytes. Pelo argumento acima, parte do meu texto "obviamente" foi para o espaço. Se foi, os leitores devem pensar duas vezes antes de compactar a próxima apresentação no seu trabalho.

Isto não ocorre, é claro. Estes compressores utilizam algoritmos de compressão sem perdas. Isto quer dizer que, quando o arquivo for descomprimido, a informação estará preservada de maneira idêntica.

Mesmo sem incursões detalhadas pelas áreas de Teoria da Informação e Computação, podemos nos convencer de que isto não é um milagre. Primeiro vamos imaginar a codificação de texto de uma  maneira, digamos, óbvia, e depois vamos pensar em como comprimi-lo.

O byte que usei como unidade para descrever o tamanho do arquivo acima é composto por 8 bits, cada um desses podendo valer 0 ou 1. Assim, existem 256 valores diferentes que podem ser armazenados em um byte (o bit tem dois valores possíveis, um conjunto de 2 bits teria 4 valores possíveis, e raciocinando assim se chega a 256 valores para 8 bits).

Um texto é composto por menos do que 256 símbolos. Há, no caso do alfabeto latino, 26 letras, mais as letras acentuadas, há símbolos de pontuação, mas não se chega a 256 símbolos. Vamos então assumir que, no meu texto, a cada letra ou símbolo (contam-se também espaços em branco e sinais para indicar mudança de linha ou tabulação), corresponde um byte.

Esta é, como chamei, a forma "óbvia" de codificação. Podemos economizar algum espaço, ou alguns bits. Vejamos uma das formas de se fazer isso, acompanhando um argumento desenvolvido pelo americano David Huffmann (1925-1999) nos anos 50. A ideia central é que estes símbolos não são usados com a mesma frequência.  Vejamos esta frase:

ESTA É UMA FRASE A SER CODIFICADA.

É só fazer as contas. O 'A' e o espaço em branco são usados 6 vezes. O 'S', 3 vezes. O 'O' e o ponto final apenas uma vez. Ora, se usarmos poucos bits para representar o 'A' e mais bits para representar o ponto final, há economia de bits.

Há detalhes importantes a observar, mas nenhuma grande dificuldade. Aplicando-se  a ideia de Huffman, se eu não errei alguma conta, teríamos 3 bits para o 'A' e 5 bits para o 'O" e outros símbolos menos usados. O texto de 33 letras (ou 33 bytes), seria reduzido a 15 bytes. Na verdade, o resultado é um pouco pior, porque não estou contando com o armazenamento da própria tabela que descreve a codificação usada. Mas, quanto maior o arquivo, menos importante é este detalhe no resultado geral. Aí está, portanto, uma diminuição de 40% no tamanho do arquivo com perda zero de informação. 

Eu disse que este argumento não se aplica ao MP3, AAC, WMA e outros formatos de compressão de áudio. E o problema não é, como alguém possa imaginar, o fato de que sons são sinais contínuos no tempo enquanto o texto é feito de um conjunto discreto de símbolos. A representação de um fluxo contínuo de valores em amostras discretas é uma questão que, ao menos em seus aspectos teóricos, foi superada nos anos 30. É na verdade a parte menos discutível a respeito da qualidade do áudio digital. 

O problema é que a ideia acima (aproveitar a desigualdade na frequência dos símbolos para uma codificação mais eficiente) tem um resultado muito pior na compressão de arquivos de áudio. De fato, a compressão de um arquivo contendo as amostras do sinal digital de áudio, pelo método acima, nos daria pouca vantagem. Os métodos de compressão de áudio são diferentes, e de fato não permitem a reconstrução do sinal de maneira idêntica. 

Ora, no fim das contas, então, o argumento dos críticos estava certo, e a compressão dos arquivos de áudio leva necessariamente à perda de qualidade? Bom, falta só um enorme detalhe: provar que perda de informação (ou seja, a impossibilidade de reconstruir o original de maneira idêntica) é o mesmo que perda de qualidade. Isto está muito longe de ser óbvio, e é assunto para outra postagem.



quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Quem inventou?

É uma importante tecnologia, essencial para a vida moderna. Muitas pessoas, de diversas nacionalidades, procuraram torná-la viável, porque representa um antigo sonho da humanidade. Entre estas contribuições, a de um brasileiro é por vezes desprezada por europeus a norte-americanos.

Eu não me refiro ao avião, de cujo desenvolvimento e funcionamento eu entendo pouco. Gostaria de apresentar aqui alguns aspectos do desenvolvimento do rádio. Embora eu não seja um especialista, é algo um pouco mais próximo dez minha área de atuação. Gostaria de, usando o exemplo do rádio, mostrar que perguntas como "quem inventou?" de certa forma carecem de sentido, quando se referem a uma tecnologia complexa, por mais que queiramos organizar este tipo de informação em uma tabela, e distribuir medalhas para nações e culturas. Podemos, no máximo, escolher um marco particularmente importante no histórico de evolução destes inventos, e, burocraticamente, chamar este marco de "invenção".

O funcionamento do rádio pressupõe um conjunto de diferentes soluções de tecnologia: a representação de áudio na forma de corrente elétrica, a propagação eficiente de sinais elétricos sem fio, a recepção destes sinais e sua amplificação. Nenhum dos personagens cujo trabalho acompanharemos pode reivindicar a autoria de todas estas soluções.

A ideia de que uma corrente elétrica (ou sua ausência) pode representar informação acaba resultando na primeira aplicação indiscutivelmente relevante da eletricidade: os telégrafos de Cooke e Wheatstone, na Inglaterra, e Morse, nos EUA. O serviço de telégrafo da estação Euston, em Londres, foi inaugurado em 1837, e em meras três décadas já era possível enviar telegramas para todos os continentes, exceto a Antártida.

Neste tipo de tecnologia, um pulso elétrico é manualmente produzido pelo emitente, que abre e fecha contatos elétricos no transmissor. Os pulsos propagam-se por fio até o destino. Operadores são treinados para transcrever texto em códigos de pulsos elétricos (sendo o mais eficiente deles o inventado por Morse, ou melhor, por seu assistente Vail) e para interpretar os pulsos recebidos como letras. Cabos cruzavam continentes e oceanos, fazendo surgir pela primeira vez a ideia de comunicação global.

A representação analógica de áudio em corrente elétrica é obtida com sucesso comercial com os microfones de carbono, que permitiriam em seguida o desenvolvimento do telefone. Thomas Edison depositou patente para esta tecnologia em 1877. Grãos de carbono são colocados entre placas metálicas, e uma delas vibra com a pressão de ar. A corrente entre as placas resulta proporcional à variação de pressão na placa-diafragama, copiando assim a forma de onda de áudio para a corrente elétrica.

Embora haja mais de um fenômeno que permita a um circuito elétrico influenciar outro à distância sem conexão por fio, as ondas eletromagnéticas são, sem dúvida, a forma mais viável. Estas aparecem, no campo teorico, nas equações do eletromagnetismo de Maxwell, desenolvidas entre os anos 50 e 70 do século XIX. Hertz as demonstraria experimentalmente na década seguinte.

Mas Maxwell e Hertz não parecem ter percebido, ou se interessado, pela possibilidade de comunicação à distância. Este último chegou a declarar, explicitamente, que não via aplicação prática para suas "ondas sem fio".

Há uma série de trabalhos que tornam as ondas eletromagnéticas as portadoras ideais para propagar informação sem fio. Deve-se citar em destaque o trabalho de Tesla, que parece ter sido um dos primeiros a perceber que tal tipo de tecnologia levaria a uma nova era de comunicação global. Fez, por exemplo, importantes avanços para obter geradores mais eficientes, trabalhando com frequências mais altas

Marconi combinou os avanços de diversos inventores em um sistema comercialmente viável para comunicação telegráfica sem fio. Em 1897, já era criada sua companhia, e o telégrafo sem fio se torna equipamento comum em transatlânticos no começo do século XX. Funcionários de Marconi estavam a bordo do Titanic e utilizaram o telégrafo sem fio para obter ajuda.

A viabilidade da tecnologia de rádio para a transmissão de voz e música teria que aguardar o desenvolvimento dos primeiros dispositivos eletrônicos, as válvulas de De Forest e Fleming, desenvolvidas nas primeiras decadas do século XX, e que eram capazes de promover a amplificação dos fracos sinais eletromagnéticos recebidos. No entanto, antes do desenvolvimento desta tecnologia, existe o notável feito do padre brasileiro Roberto Landell de Moura.

Não parece haver duvida de que a cidade de São Paulo, em 1900, é palco da primeira transmissão sem fio de voz, em demonstração pública do Padre Moura. Este fato é estranhamente pouco comentado no Brasil. Aparentemente, nosso descaso pela cultura científica é mais forte que nossas tendências ufanistas.

Sem apoio brasileiro (o que provavelmente não surpreende), mas com grande esforço proprio e de amigos, Landell de Moura consegue importantes patentes nos EUA para o "telefone sem fio" em 1904.

Não deveria Landell de Moura ser considerado então o inventor do rádio? Afinal, o que Marconi demonstra comercialmente desde a última década do século XIX é o telégrafo sem fio. Seu sistema não é adequado para a transmissão de voz e música, algo que é imediatamente associado ao que chamamos "rádio".

A primazia de Landell de Moura é defendida por muitos, mas há outros aspectos e trabalhos a considerar. O canadense naturalizado americano Fessenden também demonstra transmissão de voz em 1900, de maneira independente, e aperfeiçoa seu sistema para conseguir a primeira transmissão de música em 1906.

Mas é novamente a companhia de Marconi, chegando um pouco atrasada ao problema da transmissão contínua, adequada para áudio, que vai a partir de 1915 utilizar a nova tecnologia eletrônica de amplificação e desenvolver as primeiras estações transmissoras de rádio em operação comercial.

Em meio a tantos trabalhos, tantos esforços e tantas alegações de originalidade, quem deve receber o título de inventor do Rádio? Pelo conjunto da obra, pelos sucessivos sucessos efetivos de utilização comercial da tecnologia, a maioria acaba apontando para Marconi. O pioneirismo de Tesla, Moura, Fessenden e outros deve, porém, ser lembrado.

Mais do que reunir elementos para tentar responder à nossa pergunta, a pequena história relatada aqui, incompleta e simplificada --- ignorei, por exemplo, toda a questão de como modular as ondas eletromagnéticas para que transmitam informação --- ilustra alguns aspectos importantes e frequentemente ignorados da Tecnologia. O surgimento de uma nova tecnologia tem pouco em comum com a demonstração de um teorema, a proposta de um novo modelo teórico, a realização de um experimento revelador. Ele ocorre após um longo trabalho empírico de aplicação de diferentes técnicas. É um processo que tipicamente valoriza aspectos comerciais das soluções consideradas, algo que a academia tem dificuldade em fazer sozinha. E este processo não costuma ser fruto da inspiração individual de um gênio, mas da combinação dos esforços de equipes. São ideias a considerar hoje, quando se fala que o Brasil precisa encontrar caminhos para que tecnologia e inovação sustentem o desenvolvimento econômico e social.