sábado, 13 de agosto de 2011

Contando infinitamente parte II - Novos números


Em uma postagem anterior, raciocinamos sobre a questão dos infinitos números naturais (1,2,3,.....) e verificamos um fato curioso: mesmo tomando apenas subconjuntos destes (só os números pares, só os números maiores que 1 milhão, ou maiores que 1 bilhão) temos sempre uma “mesma” quantidade infinita de números. A primeira vista, pode parecer então que qualquer conjunto infinito tem o mesmo número de elementos. 

Será que a situação seria diferente se incluíssemos outros números além dos naturais? A operação de subtração de dois naturais, por exemplo, pode produzir números que não são naturais. Se subtraímos 101 de 100, ficamos “devendo” 1, e precisamos representar esta quantidade, que está abaixo do zero. Chegamos assim à ideia do número negativo (no caso, o número -1). Quando incluímos os negativos e o número zero aos naturais, temos os números inteiros.

Da mesma forma, a divisão entre dois naturais pode produzir números que não são naturais. Se dividirmos 10 por 3 temos um número bem definido, maior que o número 3, mas menor que o número 4, e que não é natural (nem inteiro). Quando incluímos estas frações (quantidades representadas como a razão entre dois números inteiros), construímos o conjunto dos números racionais.

Será que, ao acrescentarmos todos esses novos números aos nossos infinitos naturais, teremos uma infinitude “maior” que a dos naturais? A resposta será, mais uma vez, não.

Para mostrar por quê, vamos tornar nosso raciocínio um pouco mais amplo. Se eu usar duplas de números naturais, eu tenho um conjunto maior do que os naturais? Estas duplas são, naturalmente, formadas por dois números naturais. Aqui estão alguns exemplos.

(1 , 1)
(1 , 3)
(3 , 1)

Vejam que, se usarmos apenas os 5 primeiros naturais (1,2,3,4 e 5), podemos formar 25 duplas como essas. A quantidade parece maior, mas devemos nos lembrar da questão de comparar naturais e números pares, que discutimos na postagem anterior. Raciocinar sobre conjuntos finitos e querer daí concluir relações gerais sobre infinitudes não funciona.

De fato, novamente Cantor vem mostrar que a cada dupla dessas podemos atribuir um número natural único. A expressão nem é particularmente complicada. Se há uma dupla formada pelos números (x , y), eu atribuo a ela o número

½ (x+y) (x+y+1) +y

O leitor, se quiser, pode fazer alguns testes com esta expressão, e descobrirá que, para cada par, ela atribui um (e apenas um) número natural. Por exemplo, para os três pares apresentados acima, este "Pareamento de Cantor" indicaria os números 3, 11 e 9, respectivamente.  E ele pode ser estendido para trios, quartetos ou quaisquer listas de números.

Pelo argumento que temos usado deste a primeira postagem, uma vez que haja correspondência com os números naturais, a quantidade é igual à dos naturais. Neste ponto, talvez se deva mencionar que este argumento (segundo o qual existir correspondência entre dois conjuntos infinitos prova que eles têm a mesma quantidade) não está livre de críticas no campo da filosofia, mas não cabe uma discussão mais profunda disto aqui.

E o que tudo isso tem a ver com números negativos ou frações? Ora, quando representamos o número negativo -1, o sinal “-“ é apenas um código para indicar que este é um número negativo. Poderíamos convencionar que a dupla (0 ; 1 ) representa o número 1 e que a dupla (1 ; 1) representa o número -1. Para qualquer outro número x, (0 ; x) representa o número x e (1 ; x) representa a quantidade –x. Assim, os números inteiros são apenas um caso particular destes pares de números, em que se usam apenas os números 0 e 1 como primeiro número do par. Se existe infinitude contável de pares de números naturais, adicionar os negativos não nos ajudou em nada.

Para as frações, a relação é ainda mais evidente. Representamos a fração 10/3 desta forma por convenção. Podemos representá-la pela dupla (10 ; 3). Assim, adicionar todas as frações não produziu uma infinitude diferente.

Talvez neste ponto o leitor esteja reclamando aborrecidamente (“Já entendi. Todas as infinitudes são iguais”). Mas o interessante é que não são. Com um pouco de paciência, vamos encontrar este conjunto “mais infinito” do que os infinitos números naturais. Mas precisamos ainda de outros números.

E outros números existem, mas não vamos encontrá-los fazendo operações elementares sobre os números que já conhecemos, como acabamos de fazer com os negativos e as frações. É melhor usar aqui um argumento geométrico. Primeiro, façamos uma pergunta: o que significa uma medida? Quando o autor afirma que tem 1 metro e 65 centímetros de altura, o que isto de fato quer dizer? Podemos pensar da seguinte forma: se dividirmos o metro em 100 partes iguais, o autor cabe exatamente em 165 destas partes. Bom, na verdade não cabe, porque o autor tem vários milímetros de altura além destes 165 centímetros, mas vai dispensá-los para simplificar o argumento.

Mesmo que o autor queira os seus milímetros de altura de volta, bastaria dividir o metro em 1000 partes. Pode-se imaginar que qualquer medida “caiba” um número inteiro de vezes em algum submúltiplo suficientemente pequeno do metro. Ou, em outras palavras, que exista alguma fração relacionando qualquer comprimento e o metro, ou qualquer outra unidade de medida que se queira usar.

A descoberta de que isto não é verdade deve ser considerada uma das maiores ironias do destino em toda a história da matemática, já que ela coube justamente aos  pitagóricos, que valorizavam mais do que quaisquer outros a ideia de proporção. Em particular, eles descobriram que, em um quadrado qualquer, nenhum pedaço de seus lados, por menor que seja, cabe um número inteiro de vezes na diagonal.  

Traduzindo para números e álgebra, esta curiosa descoberta implica no fato de que a raiz quadrada do número 2 não pode ser expressa como uma fração. Diz-se que este é um número irracional. São irracionais, entre outros, as raízes quadradas dos números primos. São também irracionais certos números chamados transcendentes (que não podem ser encontrados a partir de finitas operações com números inteiros), como π (pi, a razão entre a circunferência e o diâmetro de um círculo), e e (o número de Euler, que aparece, por exemplo, na resposta de sistemas físicos a estímulos externos).

E há muitos outros. Na verdade (como o leitor pode imaginar....) há infinitos irracionais. E há infinitos irracionais entre dois números quaisquer.

Uma característica dos irracionais é que sua expressão decimal, ou seja, sua expressão como soma de potências do número 10 (unidades, décimos, centésimos, etc.) é infinita e sem repetições. Para entender isto, vamos ver o que ocorre com a expansão decimal de números racionais, primeiramente.

Em alguns casos,  números racionais têm descrição decimal finita (10/4 = 2,5). Em outros, é infinita (10/3 = 3,33333333333333333333333.....). Mesmo quando a expansão é infinita, os números desta expansão acabam se repetindo. Por exemplo, 10/7 = 1,42857428571428571....). Neste último caso, os números 428571 serão repetidos para sempre.

Já para os irracionais, a expansão decimal é infinita, e nenhuma repetição aparece. As primeiras cinquenta casas da expansão decimal de pi valem

π = 3.14159265358979323846264338327950288419716939937510...

e, por mais que se calculem novas casas, nunca haverá um padrão de repetição. Também o número de Euler, em 50 casas decimais, vale

e = 2.71828182845904523536028747135266249775724709369995...

Vejam que o “1828” parece que ia ser repetido, mas depois o número e mudou de idéia.

A inclusão dos irracionais no conjunto de racionais produz o conjunto de números reais. E este conjunto tem, finalmente uma infinitude diferente daquela dos inteiros, o que vínhamos tentando produzir até agora.

O argumento é, de novo, atribuído a Cantor, e espantoso pela sua simplicidade. Vamos supor que eu tenha concebido uma lista de todos os números reais, como fizemos anteriormente para os naturais, os inteiros e os racionais. Estes números (que incluem os irracionais) podem ser expressos por uma expressão decimal infinita. Vamos supor que a lista tenha o seguinte aspecto:

D11 D12 D13 ......
D21 D22 D23 ............
D31 D32 D33 ............
......

Em cada linha desta lista, há uma sequência (possivelmente infinita) de dígitos decimais (0,1,..,9). A rigor, devemos também indicar onde está  a vírgula decimal de cada número, mas isto pode ser facilmente definido com dígitos extras.

Não interessa de que maneira engenhosa nós tenhamos concebido tal lista: ela não pode incluir todos os irracionais. E a demonstração é muito simples. Dada esta lista, basta construir um número cuja expansão decimal é
  • Diferente de D11 na primeira casa.
  • Diferente de D22 na segunda casa.
  • Diferente de D33 na terceira casa.
e assim por diante. Teremos construído um número real que, por definição, não pode estar nesta lista, seja ela concebida como for. Se você atualizar a lista com este novo número que acabamos de construir, eu faço um novo número que não está incluído na nova lista, seguindo o mesmo método. E isto não terá fim.  Veja que o argumento não vale para os racionais, porque em algum momento seus dígitos decimais acabam ou se repetem.

Assim, não é possível colocar em correspondência os números reais e os números naturais. Os números reais não podem ser contados. Trata-se, finalmente, da infinitude incontável que procurávamos.

Depois de verificarmos tantos argumentos e tantos conjuntos de números, chegamos aonde? Conjuntos infinitos têm a estranha propriedade de terem subconjuntos com a mesma quantidade de elementos; naturais, inteiros e racionais todos pertencem a uma mesma classe de infinitude; os números reais (que incluem os irracionais) pertencem a outra classe de infinitude.

E, neste ponto de chegada, temos perguntas muito mais sérias do que aquelas com que partimos. Duas devem surgir logo de imediato:
  1. Existem infinitudes ainda maiores do que a dos reais?
  2. Existem infinitudes intermediárias, maiores do que a dos naturais e menores do que a dos reais?

Já adiantando, a resposta à primeira pergunta é sim. A resposta à segunda pergunta é.... digamos..... não se sabe.  Na verdade, é pior do que isso. Não se quer dizer que ninguém inteligente o bastante apareceu para responder à segunda pergunta. A resposta à segunda pergunta é “acredita-se que esta pergunta não possa ser respondida sem hipóteses adicionais".

Mas isso definitivamente é assunto para uma postagem futura.