domingo, 29 de maio de 2011

Contando discretamente até o infinito --- e mais um pouco. Parte I

A Matemática não tem lá uma fama muito boa. Árida, difícil, e “sem sentido” são algumas apreciações comuns. Há também a acusação de “frieza”. É considerada uma disciplina ao alcance apenas de uma minoria que nasceu com a habilidade (ou será o defeito?) de decifrar seus mistérios.

É claro que as diferentes áreas de atuação atraem pessoas com diferentes perfis. Mas é bastante injusto julgar a Matemática pelo que se faz dela na escola. Disciplina alguma (nem a Arte, nem a Ciência, nem a Filosofia) sobrevive incólume ao tratamento a ela dispensado nos bancos escolares.

É particularmente injusto colocar a Matemática lá onde agem os “frios e calculistas”, de um lado, e colocar do outro lado as disciplinas que expressam as qualidades do espírito humano. Longe de ser um campo de idéias pré-definidas, imutáveis e autonomamente construídas, a Matemática é um campo ilimitado para expressão da criatividade. Não há nela fundamentos imutáveis, nem proibições absolutas. O símbolo + pode ser redefinido para ter pouca (ou nenhuma) relação com a tabuada de adição. A afirmativa 1+1=1 pode ser válida, e estudantes de Engenharia Elétrica e de Computação trabalham rotineiramente com ela.

Por vezes, questões profundas e instigantes estão logo ao lado dos objetos e operações mais simples da matemática. É também notável como algumas dessas indagações, que parecem nascidas exclusivamente para satisfazer a uma curiosidade intelectual, acabam encontrando aplicação em campos da ciência e da tecnologia.

Vamos percorrer um desses caminhos nesta série de textos, começando com o simples ato de contar objetos. Logo estaremos nos perguntando coisas estranhas, como “todas as coleções infinitas têm o mesmo número de objetos?”, “todas as coleções de objetos podem ser contadas, mesmo que se demore infinitamente? “, “é possível conceber uma máquina que produza automaticamente a lista de todas as afirmações que podem ser provadas em matemática? “ Veremos que por trás de algumas destas questões estão conceitos bastante mundanos, que o leitor certamente já encontrou em algum momento, tais como a diferença entre o analógico e o digital, só para citar um deles.

Todos sabemos contar conchas recolhidas na praia, contar carneirinhos durante a insônia (se é que alguém realmente faz isso), e contar outros objetos. Sabemos que começamos com o número 1, e sabemos seguir daí pra frente. E sabemos ainda que, possivelmente, esta contagem não tem fim. Estes números que apareceriam na nossa contagem hipotética (1, 2, 3, etc.) são, muito apropriadamente, chamados Números Naturais.

A idéia de infinitude é incômoda. Podemos aceitá-la intuitivamente a princípio, mas é difícil fazer afirmações sobre o infinito. Por exemplo, o que ocorre se eu começar a contar do número 2? (eu resolvi pular o número 1, não gosto dele, ela dá azar). A sequência de números continua infinita, ao que tudo indica. Mas ao mesmo tempo ela deve ter um número a menos (porque o 1 vai ficar de fora). Infinito menos 1 ainda é infinito? E é o mesmo infinito?

Vamos deixar a questão ainda mais interessante. Eu quero contar apenas os números pares. Se eu contar todos os naturais até 10, vou ver que apenas 5 são pares (o 2, 4, 6, 8 e 10). Se contar até o 20, tenho 10 pares.

E se contar infinitamente? Existem mais números naturais do que números pares? Bom, parece que, se eu aumentar minha contagem mais e mais (em direção ao infinito!), continua a haver metade de pares. Assim, eu seria levado a afirmar que há 2 vezes mais números naturais do que números pares, que afinal são só um subconjunto daqueles.

No entanto, observe que há algo estranho sobre o meu argumento. Meu objetivo era comparar os infinitos números naturais com os infinitos números pares. Quando paramos a contagem em 10, em 20, ou em 1 bilhão, temos um conjunto finito, e a princípio, o raciocínio não vale.

Ora, mas certamente eu preciso parar a contagem alguma hora, não é mesmo? Curiosamente a resposta é não. Vejamos o raciocínio de Georg Cantor (1845-1918), matemático alemão que se aventurou ousadamente neste estranho campo de conjuntos que não têm fim.

Eu posso fazer uma correspondência entre cada número natural e um número par. Funciona assim: você me informa o número natural, e eu multiplico por dois. O resultado certamente será um par. A correspondência fica desta forma:
1 <-> 2
2 <-> 4
3 <->6
e assim até o infinito.

O raciocínio que precisamos seguir agora é muito simples: se a cada natural corresponde um par, o número de naturais e de pares precisa ser o mesmo. Se não fosse o mesmo, eu seria proibido de fazer esta correspondência em algum momento. Mas, dado qualquer número, sei fazer a correspondência. Ela não depende do tamanho do número escolhido. Há tantos naturais quanto pares! Veja que meu raciocínio não envolveu parar a contagem em algum momento e comparar os dois conjuntos. Estamos realmente comparando dois conjuntos infinitos...

E mais: como contar nada mais é do que atribuir um número natural a cada objeto, toda coleção que possa ser colocada em correspondência com os naturais pode ser contada, ainda que, se a coleção não tiver fim, esta contagem não termine nunca.

Sem sentido mesmo, essa matemática! Como assim pode ser contada se a contagem não termina? Veja que a matemática é elegante demais para se preocupar com coisas mundanas. Não interessa se você vai efetivamente terminar esta contagem antes de partir desta para melhor, ou ficar entediado e resolver fazer outra coisa (o que, convenhamos, é muito mais provável). A questão é saber se existe um procedimento para colocar esta coleção em correspondência com os números naturais. Se existe, ela pode ser contada. E daremos a essa coleção de infinitos objetos que pode ser contada, o nome de Infinitude Contável, é claro. Um nome no mínimo estranho sem o contexto do argumento acima.

Assim, nossa sequência de pares é uma infinitude contável. O número par “1 milhão” é o número 500000 desta sequência, e eu sei disso sem ter que contar diretamente até lá. Eu vou ter que parar a contagem alguma hora, mas eu sei o que foi contado e o que não foi, e sei onde entram os (infinitos) objetos que ainda falta contar.

E, se puder ser contada, essa coleção infinita de objetos tem “o mesmo tamanho” da coleção de números naturais. Assim como aconteceu com os pares, a quantidade de números naturais maiores que 1 milhão é igual à de números naturais. É só imaginarmos a seguinte correspondência:
1 <-> 1 milhão e 1
2 <-> 1 milhão e 2
3 <-> 1 milhão e 3

Será que este argumento nos leva a concluir que qualquer conjunto infinito é contável? A princípio, eu só preciso definir a ordem pela qual os elementos serão contados. Os exemplos que vimos nos levam a pensar que estabelecer esta ordem não deve ser tão difícil.

Na verdade, um dos resultados mais notáveis do trabalho de Cantor é uma resposta negativa a esta indagação: existem conjuntos que, além de infinitos, não podem ser colocados em correspondência com os naturais, ou seja, não se pode definir, de nenhuma forma, um método de contagem.

É interessante tentarmos encontrar estes conjuntos. Não funciona com os naturais, então teremos que procurar outros tipos de números. Mas isto fica para um próximo post. 

domingo, 22 de maio de 2011

Conheça Hans, o incrivel cavalo matemático

Durante a primeira década do século XX, alguns cidadãos da Alemanha foram brindados com um curioso espetáculo de rua: a demonstração das habilidades matemáticas e linguísticas do cavalo Hans.

Em uma destas demonstrações, por exemplo, o treinador e dono de Hans, Orlov Trotter, perguntava em voz alta: “Hans, se o dia 5 do mês caiu em uma terça-feira, qual o dia da sexta-feira seguinte?” Hans então começava a bater uma das patas no chão e parava após 8 batidas, para total admiração do público e o sorriso orgulhoso do dono.

As perguntas para Hans podiam também ser feitas por escrito, e envolver operações aritméticas de certa complexidade.

O assunto despertou óbvio interesse, e em certo momento criou-se uma comissão de investigação, formada por acadêmicos de diversas áreas e profissionais do ramo do circo. Uma série de experimentos conduzidos pelo psicólogo Oskar Pfungst começou a lançar alguma luz sobre o fenômeno. Foi observado que:
  • Hans só acertava perguntas cuja resposta fosse conhecida pelos espectadores à sua volta.
  • Hans precisava ter visão desimpedida, incluindo sua visão periférica, para responder corretamente às questões.

A comissão concluiu que Hans batia uma pata no chão até observar, por sutis sinais de alívio e aprovação de seu treinador ou do público, que havia chegado à contagem correta.

Esta história curiosa ilustra, de maneira notável, alguns aspectos do método científico e do comportamento humano (e animal) em relação ao conhecimento.

Em primeiro lugar, vemos que o ceticismo da investigação científica é uma necessidade. Não é um capricho, uma demonstração de mau-humor, de falta de imaginação ou de arrogância. Na verdade, é uma demonstração cristalina de humildade, em um nível raramente observado em outras áreas: precisamos de ceticismo para com as teses que levantamos, porque geralmente estamos errados. Porque as aparências e nossas pré-disposições nos enganam. A ciência consegue, ao longo do tempo (e com alguns recuos), fugir das armadilhas da aparência, não em virtude de ter em seus quadros pessoas de inteligência incomum, mas porque se cerca de procedimentos, por vezes incômodos, para diminuir a chance de nos enganarmos.

Outra reflexão: apesar do eventual incômodo a que me referi, os fundamentos do método científico estão à disposição de qualquer pessoa. O método de Pfungst é, de fato, simples: variar as condições dos experimentos, para verificar quais delas constituem a essência e a causa do fenômeno estudado. Se uma modificação fez o fenômenos desaparecer, estamos nos aproximando da identificação de sua causa. Não há nada de excessivamente sofisticado ou acadêmico nisso. Esta ferramenta está à nossa disposição para estudarmos e questionarmos muitos aspectos corriqueiros e cotidianos. Ela não é uma construção dos departamentos de ciências exatas das universidades, mas uma parte integral e essencial do espírito crítico do ser humano, a ser explorada e celebrada.

Deve-se notar também que, embora Hans não estivesse de fato fazendo aquilo que seu treinador e a maior parte do público imaginavam, não havia fraude alguma! Nada nas investigações da comissão ou nos experimentos de Pfungst indica que Trotter (que, a propósito, nunca cobrou por suas demonstrações) estivesse conscientemente passando dicas para Hans, ou tivesse tomado qualquer atitude para enganar o público. Este público de então viu, com aqueles olhos que a esta altura a terra já comeu, exatamente o que eles alegavam ter visto. Mas o que foi visto não nos leva a concluir que Hans fosse um cavalo versado em matemática nem (muito mais improvável ainda, obviamente) em alemão. Quando se recebe com ceticismo a informçaão de que uma testemunha alega ter presenciado algo, não estamos questionando sua honestidade ou sua honradez, mas apenas procurando explicações alternativas.

Uma última reflexão: além de ser acusada de arrogância, a ciência é por vezes criticada por “tirar a beleza” ou “o mistério” dos fenômenos. Cá estamos, às voltas com um fenômeno instigante, que nos faz pensar que animais podem ter habilidades maiores do que se imaginara, e lá vêm esses cientistas para estragar tudo com uma explicação sem graça.

E como resposta, deve-se fazer outra pergunta: quem disse que acabou o mistério? O feito de Hans é absolutamente extraordinário. É um fenômeno de interesse para a psicologia e a engenharia ainda hoje, 100 anos depois das demonstrações de Trotter. Apenas temos que interpretar esta curiosa história de maneira correta.

Hans foi capaz de estabelecer uma relação complexa com outros agentes inteligentes, construída a partir de pistas frágeis: de uma base empírica e sem planejamento, ele identificou quais eram as expectativas das pessoas à sua volta e desenvolveu de maneira autônoma um algoritmo para alcançá-la em uma interação não-trivial. Tal habilidade ainda pertence ao mundo dos sonhos da pesquisa moderna em sistemas inteligentes. Hans derrota, sem dificuldade, o mais sofisticado robô conhecido, um século depois de seus feitos. Não conhecemos o mecanismo neuro-químico capaz de representar processamento de informação de tamanha complexidade. Quem se dispuser a investigar este fenômeno não sofrerá por falta de mistérios.

E não precisamos parar por aí. Seria estranho que esse “efeito Hans” não tivesse um equivalente, ainda mais sutil e complexo, quando falamos da relação entre seres humanos. Quando fazemos entrevistas ou pesquisas de opinião, será que nosso sujeito não retira do entrevistador (que se esforça para manter-se neutro) dicas sutis sobre a resposta esperada, e não se sente, em algum nível, compelido a satisfazê-la? Será que isto explica, por exemplo, por que posições políticas extremas frequentemente têm maior representação no processo secreto de voto do que nas pesquisas eleitorais?

Hans nos oferece mistérios instigantes e a ciência nos convida a falarmos sobre eles. Ela só nos ajuda a não perdermos tempo onde o mistério não está.