A Matemática não tem lá uma fama muito boa. Árida, difícil, e “sem sentido” são algumas apreciações comuns. Há também a acusação de “frieza”. É considerada uma disciplina ao alcance apenas de uma minoria que nasceu com a habilidade (ou será o defeito?) de decifrar seus mistérios.
É claro que as diferentes áreas de atuação atraem pessoas com diferentes perfis. Mas é bastante injusto julgar a Matemática pelo que se faz dela na escola. Disciplina alguma (nem a Arte, nem a Ciência, nem a Filosofia) sobrevive incólume ao tratamento a ela dispensado nos bancos escolares.
É particularmente injusto colocar a Matemática lá onde agem os “frios e calculistas”, de um lado, e colocar do outro lado as disciplinas que expressam as qualidades do espírito humano. Longe de ser um campo de idéias pré-definidas, imutáveis e autonomamente construídas, a Matemática é um campo ilimitado para expressão da criatividade. Não há nela fundamentos imutáveis, nem proibições absolutas. O símbolo + pode ser redefinido para ter pouca (ou nenhuma) relação com a tabuada de adição. A afirmativa 1+1=1 pode ser válida, e estudantes de Engenharia Elétrica e de Computação trabalham rotineiramente com ela.
Por vezes, questões profundas e instigantes estão logo ao lado dos objetos e operações mais simples da matemática. É também notável como algumas dessas indagações, que parecem nascidas exclusivamente para satisfazer a uma curiosidade intelectual, acabam encontrando aplicação em campos da ciência e da tecnologia.
Vamos percorrer um desses caminhos nesta série de textos, começando com o simples ato de contar objetos. Logo estaremos nos perguntando coisas estranhas, como “todas as coleções infinitas têm o mesmo número de objetos?”, “todas as coleções de objetos podem ser contadas, mesmo que se demore infinitamente? “, “é possível conceber uma máquina que produza automaticamente a lista de todas as afirmações que podem ser provadas em matemática? “ Veremos que por trás de algumas destas questões estão conceitos bastante mundanos, que o leitor certamente já encontrou em algum momento, tais como a diferença entre o analógico e o digital, só para citar um deles.
Todos sabemos contar conchas recolhidas na praia, contar carneirinhos durante a insônia (se é que alguém realmente faz isso), e contar outros objetos. Sabemos que começamos com o número 1, e sabemos seguir daí pra frente. E sabemos ainda que, possivelmente, esta contagem não tem fim. Estes números que apareceriam na nossa contagem hipotética (1, 2, 3, etc.) são, muito apropriadamente, chamados Números Naturais.
A idéia de infinitude é incômoda. Podemos aceitá-la intuitivamente a princípio, mas é difícil fazer afirmações sobre o infinito. Por exemplo, o que ocorre se eu começar a contar do número 2? (eu resolvi pular o número 1, não gosto dele, ela dá azar). A sequência de números continua infinita, ao que tudo indica. Mas ao mesmo tempo ela deve ter um número a menos (porque o 1 vai ficar de fora). Infinito menos 1 ainda é infinito? E é o mesmo infinito?
Vamos deixar a questão ainda mais interessante. Eu quero contar apenas os números pares. Se eu contar todos os naturais até 10, vou ver que apenas 5 são pares (o 2, 4, 6, 8 e 10). Se contar até o 20, tenho 10 pares.
E se contar infinitamente? Existem mais números naturais do que números pares? Bom, parece que, se eu aumentar minha contagem mais e mais (em direção ao infinito!), continua a haver metade de pares. Assim, eu seria levado a afirmar que há 2 vezes mais números naturais do que números pares, que afinal são só um subconjunto daqueles.
No entanto, observe que há algo estranho sobre o meu argumento. Meu objetivo era comparar os infinitos números naturais com os infinitos números pares. Quando paramos a contagem em 10, em 20, ou em 1 bilhão, temos um conjunto finito, e a princípio, o raciocínio não vale.
Ora, mas certamente eu preciso parar a contagem alguma hora, não é mesmo? Curiosamente a resposta é não. Vejamos o raciocínio de Georg Cantor (1845-1918), matemático alemão que se aventurou ousadamente neste estranho campo de conjuntos que não têm fim.
Eu posso fazer uma correspondência entre cada número natural e um número par. Funciona assim: você me informa o número natural, e eu multiplico por dois. O resultado certamente será um par. A correspondência fica desta forma:
1 <-> 2
2 <-> 4
3 <->6
e assim até o infinito.
O raciocínio que precisamos seguir agora é muito simples: se a cada natural corresponde um par, o número de naturais e de pares precisa ser o mesmo. Se não fosse o mesmo, eu seria proibido de fazer esta correspondência em algum momento. Mas, dado qualquer número, sei fazer a correspondência. Ela não depende do tamanho do número escolhido. Há tantos naturais quanto pares! Veja que meu raciocínio não envolveu parar a contagem em algum momento e comparar os dois conjuntos. Estamos realmente comparando dois conjuntos infinitos...
E mais: como contar nada mais é do que atribuir um número natural a cada objeto, toda coleção que possa ser colocada em correspondência com os naturais pode ser contada, ainda que, se a coleção não tiver fim, esta contagem não termine nunca.
Sem sentido mesmo, essa matemática! Como assim pode ser contada se a contagem não termina? Veja que a matemática é elegante demais para se preocupar com coisas mundanas. Não interessa se você vai efetivamente terminar esta contagem antes de partir desta para melhor, ou ficar entediado e resolver fazer outra coisa (o que, convenhamos, é muito mais provável). A questão é saber se existe um procedimento para colocar esta coleção em correspondência com os números naturais. Se existe, ela pode ser contada. E daremos a essa coleção de infinitos objetos que pode ser contada, o nome de Infinitude Contável, é claro. Um nome no mínimo estranho sem o contexto do argumento acima.
Assim, nossa sequência de pares é uma infinitude contável. O número par “1 milhão” é o número 500000 desta sequência, e eu sei disso sem ter que contar diretamente até lá. Eu vou ter que parar a contagem alguma hora, mas eu sei o que foi contado e o que não foi, e sei onde entram os (infinitos) objetos que ainda falta contar.
E, se puder ser contada, essa coleção infinita de objetos tem “o mesmo tamanho” da coleção de números naturais. Assim como aconteceu com os pares, a quantidade de números naturais maiores que 1 milhão é igual à de números naturais. É só imaginarmos a seguinte correspondência:
1 <-> 1 milhão e 1
2 <-> 1 milhão e 2
3 <-> 1 milhão e 3
Será que este argumento nos leva a concluir que qualquer conjunto infinito é contável? A princípio, eu só preciso definir a ordem pela qual os elementos serão contados. Os exemplos que vimos nos levam a pensar que estabelecer esta ordem não deve ser tão difícil.
Na verdade, um dos resultados mais notáveis do trabalho de Cantor é uma resposta negativa a esta indagação: existem conjuntos que, além de infinitos, não podem ser colocados em correspondência com os naturais, ou seja, não se pode definir, de nenhuma forma, um método de contagem.
É interessante tentarmos encontrar estes conjuntos. Não funciona com os naturais, então teremos que procurar outros tipos de números. Mas isto fica para um próximo post.