Durante a primeira década do século XX, alguns cidadãos da Alemanha foram brindados com um curioso espetáculo de rua: a demonstração das habilidades matemáticas e linguísticas do cavalo Hans.
Em uma destas demonstrações, por exemplo, o treinador e dono de Hans, Orlov Trotter, perguntava em voz alta: “Hans, se o dia 5 do mês caiu em uma terça-feira, qual o dia da sexta-feira seguinte?” Hans então começava a bater uma das patas no chão e parava após 8 batidas, para total admiração do público e o sorriso orgulhoso do dono.
As perguntas para Hans podiam também ser feitas por escrito, e envolver operações aritméticas de certa complexidade.
O assunto despertou óbvio interesse, e em certo momento criou-se uma comissão de investigação, formada por acadêmicos de diversas áreas e profissionais do ramo do circo. Uma série de experimentos conduzidos pelo psicólogo Oskar Pfungst começou a lançar alguma luz sobre o fenômeno. Foi observado que:
- Hans só acertava perguntas cuja resposta fosse conhecida pelos espectadores à sua volta.
- Hans precisava ter visão desimpedida, incluindo sua visão periférica, para responder corretamente às questões.
A comissão concluiu que Hans batia uma pata no chão até observar, por sutis sinais de alívio e aprovação de seu treinador ou do público, que havia chegado à contagem correta.
Esta história curiosa ilustra, de maneira notável, alguns aspectos do método científico e do comportamento humano (e animal) em relação ao conhecimento.
Em primeiro lugar, vemos que o ceticismo da investigação científica é uma necessidade. Não é um capricho, uma demonstração de mau-humor, de falta de imaginação ou de arrogância. Na verdade, é uma demonstração cristalina de humildade, em um nível raramente observado em outras áreas: precisamos de ceticismo para com as teses que levantamos, porque geralmente estamos errados. Porque as aparências e nossas pré-disposições nos enganam. A ciência consegue, ao longo do tempo (e com alguns recuos), fugir das armadilhas da aparência, não em virtude de ter em seus quadros pessoas de inteligência incomum, mas porque se cerca de procedimentos, por vezes incômodos, para diminuir a chance de nos enganarmos.
Outra reflexão: apesar do eventual incômodo a que me referi, os fundamentos do método científico estão à disposição de qualquer pessoa. O método de Pfungst é, de fato, simples: variar as condições dos experimentos, para verificar quais delas constituem a essência e a causa do fenômeno estudado. Se uma modificação fez o fenômenos desaparecer, estamos nos aproximando da identificação de sua causa. Não há nada de excessivamente sofisticado ou acadêmico nisso. Esta ferramenta está à nossa disposição para estudarmos e questionarmos muitos aspectos corriqueiros e cotidianos. Ela não é uma construção dos departamentos de ciências exatas das universidades, mas uma parte integral e essencial do espírito crítico do ser humano, a ser explorada e celebrada.
Deve-se notar também que, embora Hans não estivesse de fato fazendo aquilo que seu treinador e a maior parte do público imaginavam, não havia fraude alguma! Nada nas investigações da comissão ou nos experimentos de Pfungst indica que Trotter (que, a propósito, nunca cobrou por suas demonstrações) estivesse conscientemente passando dicas para Hans, ou tivesse tomado qualquer atitude para enganar o público. Este público de então viu, com aqueles olhos que a esta altura a terra já comeu, exatamente o que eles alegavam ter visto. Mas o que foi visto não nos leva a concluir que Hans fosse um cavalo versado em matemática nem (muito mais improvável ainda, obviamente) em alemão. Quando se recebe com ceticismo a informçaão de que uma testemunha alega ter presenciado algo, não estamos questionando sua honestidade ou sua honradez, mas apenas procurando explicações alternativas.
Uma última reflexão: além de ser acusada de arrogância, a ciência é por vezes criticada por “tirar a beleza” ou “o mistério” dos fenômenos. Cá estamos, às voltas com um fenômeno instigante, que nos faz pensar que animais podem ter habilidades maiores do que se imaginara, e lá vêm esses cientistas para estragar tudo com uma explicação sem graça.
E como resposta, deve-se fazer outra pergunta: quem disse que acabou o mistério? O feito de Hans é absolutamente extraordinário. É um fenômeno de interesse para a psicologia e a engenharia ainda hoje, 100 anos depois das demonstrações de Trotter. Apenas temos que interpretar esta curiosa história de maneira correta.
Hans foi capaz de estabelecer uma relação complexa com outros agentes inteligentes, construída a partir de pistas frágeis: de uma base empírica e sem planejamento, ele identificou quais eram as expectativas das pessoas à sua volta e desenvolveu de maneira autônoma um algoritmo para alcançá-la em uma interação não-trivial. Tal habilidade ainda pertence ao mundo dos sonhos da pesquisa moderna em sistemas inteligentes. Hans derrota, sem dificuldade, o mais sofisticado robô conhecido, um século depois de seus feitos. Não conhecemos o mecanismo neuro-químico capaz de representar processamento de informação de tamanha complexidade. Quem se dispuser a investigar este fenômeno não sofrerá por falta de mistérios.
E não precisamos parar por aí. Seria estranho que esse “efeito Hans” não tivesse um equivalente, ainda mais sutil e complexo, quando falamos da relação entre seres humanos. Quando fazemos entrevistas ou pesquisas de opinião, será que nosso sujeito não retira do entrevistador (que se esforça para manter-se neutro) dicas sutis sobre a resposta esperada, e não se sente, em algum nível, compelido a satisfazê-la? Será que isto explica, por exemplo, por que posições políticas extremas frequentemente têm maior representação no processo secreto de voto do que nas pesquisas eleitorais?
Hans nos oferece mistérios instigantes e a ciência nos convida a falarmos sobre eles. Ela só nos ajuda a não perdermos tempo onde o mistério não está.
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