sábado, 27 de setembro de 2014

A falácia do argumento falacioso - Parte I: Ad hominem

Costumamos dizer que usamos lógica perfeita em nossos argumentos, e nossos adversários, se por erro ou má fé não se sabe, usam argumentos apaixonados e sem lógica. Isso raramente é verdade. De fato, o fascinante campo da lógica formal ajuda-nos muito pouco em uma discussão mundana sobre questões concretas, pelo simples fato de que frequentemente partimos de premissas diferentes sobre nossos objetivos, e sobre o que estamos dispostos a pagar para alcançá-los.

Em geral, acusamos nossos adversários de cair em "falácias". É divertido analisar criticamente a questão das falácias, e verificar que esta acusação é, não raro, falaciosa.

Uma acusação comum de falácia  é de que foi usado um argumento "ad hominem". E podemos ter certeza de ter feito algo muito sério quando nos acusam em latim. Em bom português, estaríamos sendo acusados de construir um argumento dirigido à pessoa e não à ideia que ela defendera. Por exemplo, após ouvir alguma argumentação sobre a defesa do meio ambiente, seria "ad hominem" retrucar algo como "você diz defender o meio-ambiente mas ontem eu lhe vi avançando o sinal vermelho". Avançar o sinal vermelho é errado, mas isso nada tem a ver com os argumentos do suposto infrator no assunto meio-ambiente.

O curioso é que a expressão "ad hominem" é frequentemente usada de maneira, paradoxalmente, falaciosa. Por exemplo, quando se discute uma atitude (no caso, a defesa do meio ambiente), NÃO é falacioso, muito menos "ad hominem", apontar que tal atitude é contrária àquilo praticado por quem a defende. Se a atitude tem a ver com a defesa do meio ambiente, não seria ad hominem a objeção "você fala sobre defender o meio-ambiente por meio do uso coletivo do transporte,  mas eu nunca lhe vi deixar o carro na garagem". Esta é uma objeção, lógica e válida, à boa fé e sinceridade do proponente da hipotética tese ambientalista. O proponente pode ter uma boa explicação para isso, mas precisa se explicar. Gritar "ad hominem" não resolve.

Também não é "ad hominem" indicar que o próprio argumento desqualifica seu proponente por sua condição. Essa acusação costuma surgir alguém dramatiza a defesa de sua proposta com algo do tipo "só o povo oprimido nas ruas pode entender do que estou falando!" --- ora, então você mesmo não pode entender do que está falando, ou está oprimido nas ruas? Esse erro é consequência da mania de nos vermos como extra-terrestres bondosos, que tudo veem mas que não têm interesse pessoal nas coisas do mundo. Uma mentira, obviamente, que não se torna menos mentirosa com pitadas de latim.

Não é fácil a tarefa de argumentar corretamente. Deveria ser uma parte importante do aprendizado das escolas --- melhor do que garantir que os estudantes do ensino médio saibam de cor as fases da mitose. Tal dificuldade não deveria ser uma surpresa. Damos, humildemente, o título de "sábia" para a nossa própria espécie, mas nós não chegamos aqui por argumentos e reflexões.  Em meio a uma discussão, nossas narinas se inflam e nossos dentes rangem --- até mesmo os do que se dizem "defensores da paz mundial". E por uma razão elementar: nosso corpo não sabe a diferença de um debate de ideias e uma luta pela vida.

Isso nos diz que violência e a força --- escrevo outro dia sobre a falácia "ad baculum" --- é o caminho natural? Não diz, e na verdade eu não sei quanto ao leitor(a), mas eu não dou a mínima para o que seria o "caminho natural". Só me preocupa o caminho moral e eticamente correto, que não está logicamente amarrado a nada que a natureza venha a exibir.

O que isso nos diz é que, por honestidade intelectual, devemos parar de fingir sermos máquinas calculadoras de predicados lógicos, ou instrumentos da verdade revelada. Numa tarefa difícil e perigosa, esses presunçosos mamíferos que somos deveriam investigar seus próprios argumentos procurando neles o preconceito, o interesse egoísta, a visão parcial e míope, o instinto animal. De outro modo, como seria possível aprender alguma coisa quando nossas falácias forem expostas?


Um comentário:

  1. Discordo. Não acho errado, por exemplo, acusar "ad hominem" alguém cuja atitude difere da posição intelectual dita na discussão. O que normalmente o que está a ser discutido não são as atitudes das pessoas envolvidas, mas sim qual ponto deve se prevalecer.
    Por exemplo:
    "Fumante: fumar é uma atitude burra e errada.
    Homem: diz isso mas continua fumando.
    Fumante: ad hominem."

    O que estava sendo discutido não era a postura do fumante diante do ponto discutido, mas sim o ponto propriamente dito. Caso não houvesse a acusação "ad hominem" por parte do fumante a discussão mudaria de rumo para como o fumante se porta como indivíduo.
    Caso você queira criticar a atitude do homem, deixe tal crítica para outra discussão que foque nas atitudes.
    Por exemplo:
    Fumante: fumar é uma atitude burra e errada.
    Homem: por que?
    Fumante: porque faz mal para os pulmões.
    Homem: certo, mas, sabendo disso, por que continua fumando?
    Descaracterizou o "ad hominem".

    ResponderExcluir