segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Chamando a Tecnologia de "Vossa Excelência"

A expressão é comum no futebol: o craque tem intimidade com a bola, trata a bola por "você". O perna-de-pau já a chama de "Vossa Excelência".

Eu acredito que o português falado no Brasil, e as regras de redação científica que nós mesmo nos impomos, nos faz chamar a Ciência, e em particular a Tecnologia, de "Vossa Excelência".Termos são mantidos no idioma inglês, por vezes sem necessidade alguma, ou a tradução vai buscar palavras desnecessariamente eruditas. Em nome da objetividade, o autor se preocupa mais em esconder os sujeitos das orações do que em comunicar ideias. Eu conheço alguns exemplos da área de eletrônica e informática, mas tenho certeza que o caso é mais geral.

Primeiro, vamos voltar ao futebol: goleiro, escanteio, zagueiro, centro-avante. Traduções que foram, em algum momento, inventadas, e que devem ter soado estranhíssimas para quem se acostumara com as corruptelas nacionalizadas, que ainda podem ser encontradas em textos antigos sobre o esporte no Brasil: golquipa, corner, beque, centerfor.

Seria tão difícil buscar uma tradução para, digamos software (que os franceses chamam logiciel)? A questão não é de nacionalismo. Não vejo problema em o português absorver dezenas de palavras do inglês em informática. O problema, de novo, é de recorrer a um idioma estrangeiro para tornar uma palavra mais respeitável e séria, mais "vossa excelência".

Muitos não escondem um sorriso discreto e superior ao saber que os portugueses chamam de rato o dispositivo indicador do computador ou, para mais um exemplo esportivo, de grelha a disposição dos carros antes da largada. Mas ora, mouse e grid não querem dizer nada mais profundo que rato e grelha. Se achamos a alegoria crua, por que não buscamos algo menos cru na nossa língua?

Na área de eletrônica digital, um circuito capaz de se manter estável em duas condições diferentes é a base de muitas formas de armazenamento de dados (armazena um 0 em um de seus estados estáveis, ou um 1 no outro estado). Tal dispositivo recebe nomes simples em inglês: latch (ferrolho) ou flip-flop (algo como vira-vira). Na verdade, estes dois nomes são usados para dispositivos sutilmente diferentes, mas isto não interessa aqui. Interessa que nós buscamos, nos píncaros do academicismo, o palavrão "multivibrador biestável" para descrever a mesma coisa. Convenhamos, já estamos quase trocando Vossa Excelência por Vossa Majestade.

Antes de sairmos da questão da tradução, não posso deixar de comentar o curioso caso da palavra "mídia". Corruptelas em geral são formadas mudando-se a ortografia da palavra para aproximá-la da pronúncia local (é a transformação de goal keeper para golquipa, vista acima). Já "mídia" parece ser uma corruptela às avessas. Transformamos a palavra latina media (meios) para que fique mais parecida com a pronúncia intuitiva e errada de cidadãos de língua inglesa...

Mas o esforço, consciente ou não, de tornar a tecnologia algo distante e estranho não se resume a uma escolha particular de palavras. Eu poderia citar o exagero das siglas, mas o pior mesmo são algumas praticas de redação técnica. Se eu costumo reclamar do tom bolorento e pedante de alguns trabalhos academicos das áreas de humanidades, devo reconhecer que os da área tecnológica perdem feio, em particular com sua bizarra preferência pela voz passiva e pelas orações sem sujeito.

Se o estudante escreve "Fizemos as medidas apresentadas neste trabalho usando o equipamento tal do laboratório tal" fatalmente ouvirá que precisa escrever de maneira mais objetiva. Se ousar escrever "Fiz", pode ser expulso da sala, entre esconjuros e aspersões de água benta.

E eu confesso que o argumento da objetividade nunca me convenceu. "Fizeram-se as medidas..." faria o leitor desconfiar que seres superiores fizeram as medidas e deixaram o resultado em nosso laboratório para que os reportássemos, assim propagando a Verdade? Não é escamoteando o sujeito da oração que nos tornamos objetivos. A objetividade cientifica vem da garantia de neutralidade do método empregado em relação à tese defendida, da comparação clara de resultados com teses alternativas, da investigação de significância estatística nas diferenças encontradas. Usar a voz passiva, ou procurar despertar o sono no leitor, é a parte fácil.

Se vamos empregar criativamente a tecnologia, e vamos defender que seu estudo seja mais difundido e mais respeitado, que tal evitarmos a formalidade, a complexidade desnecessária, a redação artificial e enfadonha? Vamos tratá-lá por "você"?

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